domingo, 25 de outubro de 2009

o crime da biblioteca

nos banheiros as torneiras abertas. água. muita água. água fria. gelada. o vidro estilhaçado das vidraças por todas as partes. até mesmo dentro dos olhos esquecidos dos transeuntes que passavam diante daquele edíficio velho e feio. armados de negros guarda-chuvas e coturnos militares. as estantes tombadas. um telefone fora do gancho confessava o nome do criminoso. tu. tu. tu. livros espalhavam-se aos montes. manchados de água, tinta e suor. no centro de tudo pairava entre capas, espadas, contra-capas, introduções e artigos sobre incisões profundas... lá estava ele. o corpo. da ponta do dedo direito escorria sangue, como nanquim Real. parecia que tentara escreer. nu. alvo. alvíssimo. nenhuma cicatriz, mancha, pinta ou marca de nascença. nada. nenhum caractere. praticamente um pequeno efebo. um pequeno sol. os olhos claros, claríssimos, em que a pupila se perdia no cristalino. tão sem cor. vítreo. a água escorria gelada pelas escadas misturando-se com a chuva. ninguém chorava. apenas o dedo indicador do cadáver vertia uma gota vermelha que nada indicava. uma grande ilustração de dali nadava sorrateiramente ali, ao lado de um recibo, uma notificação de atraso e um boleto bancário. as páginas se dobravam. a água impunha movimento quase coreográfico e unia numa corrente contínua, rumo à rua, livros díspares quem nem mesmo suas estantes se namoravam um pouco. tudo tão cênico. tão vazio. não fosse aquele dedo dizendo que o corpo não era um origami perfeito demais ou uma das (impossíveis) estátuas de mármore (da coleção que o acervo nem sequer possuía). era belo. infalívelmente belo. mergulhado no meio dos livros. como desenhar o signo do crime? qual livro testemunhara tal atrocidade? as gotas vermelhas seguiam pela biblioteca, pelos corredores e marcava, como se fosse algum código secreto, as capas dos livros. um crime e castigo. bovary. uma biografia de marilyn monroe. livros de álgebra e geometria. nada coerente. um livro de desenho. as gotas pululavam e desapareciam. ora eram capas. oram páginas. enquanto ali pairava o corpo. sem nome. indigente. impossível na sua branca singularidade dos sem documentos. um cigano angélico às portas da muralhas, feita de estantes e instantes, dessa pequena notre-dame sem campanários para esconder o corpo. feita fonte. não havia sequer curiosos. o silêncio ainda assim imperava brando e branco. apenas os passos silencioso do pessoal autorizado (uma única pessoa) mal se escutavam. respiração alexandrina. dedos rápidos e pequenos olhos negros rasgados. tentava capturar a história, criminosamente, inventando relações. até que... diante daquela página um botão de seu paletó sucumbiu e mergulhou entre os livros, creio que era, possivelmente a retórica de aristóteles, e com ele caiu também este corpo investigativo. as páginas da caderneta de anotações foram arrancadas pela força das águas. restava agora dois corpos na biblioteca. um estranho, desconhecido, quase divino e perfumado. o outro ainda quente, suado, tiritintando os dentes, acabara de desvendar o vislumbre último. e uma página de resolução. manuscrito final: "dramas da madrugada: abandonado numa biblioteca que pesa e dói. vontade de ser engolido pelos livros". entre os dois corpos uma edição ilustrada de alice no país do espelho dançava aberta sob as águas que inundavam o assoalho xadrez da biblioteca.

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