domingo, 9 de junho de 2013

o caso não era de que narciso fosse realmente belo, ele o era. mas não o era tão amante de si mesmo. não foi por si que se lançou ao lago, mas pelo estranho reflexo que ali encontrou. é que o lago, estando apaixonado pelo rapaz, o queria para si e no reflexo de narciso mostrou seu rosto ao qual o jovem foi ao encontro.

terça-feira, 21 de maio de 2013

- Amor.

Sem pestanejar respondeu o garoto ao ser indagado sobre qual o preço dele pra ser levado pra cama.
Caro demais - preferiu procurar outro homem.

domingo, 14 de abril de 2013

me pergunto: o que me leva a manter espaço ainda, a escrever aqui. não sei responder. tento, mas dou voltas e me engano, finjo que ainda há um motivo para escrever, alguém a quem possa me endereçar. algum olhar perdido. são 4 horas da manhã, madrugada de sábado para domingo, enquanto as pessoas estão nas ruas, bebendo, procurando, trocando mais que beijos... eu, aqui, sentado diante do computador, minhas costas doem, a caneca de café vazia ao lado, o quarto envolvendo o próprio caos de minhas ideias. não tenho mais chocolate. mas ainda tenho fome. mas nem sei do quê.  a aventura da noite, tentando passear pela turquia com pierre loti. a tradução está em andamento. mas estou disperso, não sei o que pensar. já não tenho mais grandes crenças. estou definitivamente cansado e mal comecei esta vida. ainda não sou chancela de nada, minha opinião não vale um nada.  mas estou tentando, galgando os degraus. eu recapitulo os meus planos gradiosos e vejo que até agora nenhum deles se manteve por perto. nenhum deles irá acontecer, bem sei. meu tornozelo esquerdo dói da aula de ballet na sexta, a pressão de subir nas pontas ainda marca ele. quanto ao resto, já não sei mais. um convite para habitar um coração, talvez? mas não há coração, afora aqueles devorados na mesa de jantar. a possibilidade irônica está agora longe, como um remake ruim de lago dos cisnes, não é odile a vilã, mas a pureza de odette que é insuportável.  precisava de uma massagem, mas me satisfaria um abraço apertado. a cada dia mais só, a cada dia, mas há sempre os livros, aos milhares. é engraçado, já que o livro é como uma grande prostituta que se abre a quem nele  chegar para procurar o que for, ele se abre e acolhe entre as páginas, como se fossem coxas, e permite o que não se deveria. e nos perdemos nas vírgulas como quem é roubado numa esquina. talvez eu precise de mais café. ou simplesmente da coragem para levantar desta cama e sair caminhar pela madrugada e ver o sol nascer em algum lugar diante do mar. mas não, não quero sair deste conforto intrigante, há o frio, há o escuro. aqui há apenas o caractere pesado e negro manchando a tela onde todas as minhas lutas são com um dragão de papel. não sei que me resta.

domingo, 7 de abril de 2013

fecho meus olhos e repasso as alternativas. o quarto de janelas fechadas, a luz acesa, os livros espalhados pelo chão, as coisas de dança lançadas a um canto... o celular em silêncio. houve uma época em que as coisas, cada qual, já se encontrou em seu lugar e que havia espaço para o ar circular e os pés tocarem o chão. agora apenas ouço nicole croisille e me resta o silêncio aterrador. o que posso querer ainda? há uma ousadia tão grande em pensar nisto. estou me tornando invisível, estou perdendo minhas palavras. já não consigo escrever, talvez por isso hoje em dia é sempre uma página a menos, uma linha a menos... já não consigo também desenhar com a mesma facilidade antes. me sinto vazio como se apenas insistisse em existir, mas sem motivo, mas também sem forças ou razões pra encontrar algum motivo.  eu repito há tanto tempo a mesma história, o mesmo fuso horário, o galope dos dias. talvez seja o momento para voltar a visitar grandes ruínas, o silêncio estarrecedor do resto no meio do caos. mas não há possibilidade para o caos, há a impertinência de uma organização sem fim e, no entanto, não tenho mais reflexo ao espelho. não saberia dizer há quanto tempo não desenho mais meu rosto. houve um dia, um banho, um rosto lavado, em que a maquiagem escorreu ralo abaixo e eu não me encontrei nisto que ficava nem mesmo nas cores que se íam com a água. talvez eu tenha me perdido no caminho, na volta pra casa, ao dobrar uma esquina. queria um gole quente de café, meu chocolate acabou...  a vida transformou-se numa sequência de páginas a serem lidas e num outro tanto de páginas para ser escritas. e eu canso, tropeço... falho até até as raias da ortografia, quando as letras começam a ser trocadas, quando as pálpebras pesam... e então eu imagino ser a hora de parar, de fechar os olhos, tentar sonhar, mas nunca sonho, ou não há um sonho novo ou ele é apenas esquecido junto com o corpo que perde seu nome na cama. e resta a escuridão. e todos meus fantasmas amigos são aqueles que sofrem... é emma, clarisse, ofélia... mas toda pontinha de solidão é como as madeleines de proust, fazem pensar.... abrem o mundo. mas há quem prefira romances policiais. aquele desvendar do seu segredo ao piscar de olhos, um desvio na retina, um sorriso que não se vê, ideias insubordinadas abafadas por lenços de seda. e há quem vai a praia e veja o sol se pôr. mas eu continuo aqui, livro aberto, no aperto... tentando pensar.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

sentado diante da tv, choro. mas não há nada de novo na tela ou diante dela. o sofá vermelho me expulsando devagar, os livros sobre a mesa já abertos à espera. eu também espero. queria não pedir, não implorar a migalha de atenção, mas aos poucos eu vou desistindo de mim. não é que o castelo de cartas desmorone, nunca houve castelo. talvez um dia toque a campainha e seja o correio. talvez um dia toque o telefone e seja você. te enviei um convite para um café, para embebedar seus dentes alvos num pouco de cafeína, o único modo que tenho de não lhe tocando (porque me é vedado) de lhe alterar o pulso. mas eu não sou a chuva com seus relâmpagos e trovões que te empurra para baixo do edredon, cada vez mais perto de mim. eu preciso preterir o pretérito. aqui, chovendo em mim, invento a ficção para fazer as coisas funcionarem: coloco hegel no divã de lacan. e tento me ocupar. não queria sentir sua falta ausente, você que nunca esteve aqui, nunca tocou nas minhas páginas. queria trocar chocolates por beijos. ou não trocaria nada e apenas teria os teus beijos. eu tenho fome, mas não consigo sair daqui. não consigo pensar nem no livro, tropeço na tua imagem. nesta imagem silenciosa que eu queria mas não posso... não devo. eu me sinto feio, estranho... não tenho nada a te oferecer a não ser a possibilidade de se perder comigo pelos corredores escuros da biblioteca, mas que você apenas me oferece nos meus sonhos. não tenho aqui, não estou nos teus sonhos, não te acompanho enquanto dormes. eu não tenho minha taça de vinho, nenhuma sequer,mas tenho o campo aberto até a linha do horizonte. talvez se eu corresse tanto, tanto e tanto, para além da última gota de suor, para além do ponto em que as pernas aguentassem, para além de qualquer expectativa, eu chegasse em algum lugar e lá te encontrasse. mas isso é apenas um desejo poético. eu sei onde estas, sei as ruas por onde andas e por onde segues. sei o peso de tuas letras. enquanto eu fico aqui contando até três, lavando o rosto, tentando e tentando, com força e ainda, e tu me engoles neste silêncio. talvez seja o peso do tempo que nos separa e não o espaço. como a madeleine de proust: estou lugar certo, mas no tempo errado. não sei se devo andar para frente ou para trás. como virar a ampulheta, sem mudar nada. cruzando os espaços, trocando os livros, escondendo o nome. e esta noite você viria a minha casa, escutaríamos john bennet, tomaríamos um scotch, que sei que tu não bebes, mas aprenderia. eu sei o que quero, que é nesta suspensão de corda bamba, sem exigências. o mine eyes... meu príncipe... é tua voz assolando meus corredores, tua respiração... mas meu príncipe talvez nem exista com sua nobreza de pés descalços e dorso nu... saltando na água ao fim da tarde, deixando-se beijar pelo quente toque de bronze do sol. e aos poucos até estas lágrimas perdem o sentido, estas palavras vão se apagando, o corpo amaciado abraça a tela, tenta se esquece de novo e ainda e mais uma. talvez tentando digerir o teu nome que ainda não sabe, esperando que os dados parem de girar ou que a bala, roleta russa, enfim atinja algum corpo. você logo vai descobrir que eu não sou a fantasia de ninguém. e eu não permito que você desconfie do real destas lágrimas, do gosto amargo da boca vazia, das borboletas digeridas pelo suco gástrico. eu tenho os postais que quero te enviar já escritos, as cartas, os planos no qual você é apenas um espaço a ser preenchido por um tempo que não vem. isto não quer dizer que eu creia em destino, mas que sonho e te faço delírio. te encontro nas linhas da minha mão porque, em vão, tento te segurar aqui. não sou eu que coloco o ponto final desta história que é impossível de ser contada, mas porque em nenhum mundo possível houve lógica que a suportasse ou uma linguagem em que se pudesse registrá-la. mas eu tento. é preciso tentar. arriscar puxar o gatilho do 38 ou o salto de um vigésimo andar, deixando o corpo em queda-livre. sem correntes. meu rosto ainda coça, estou sem maquiagem... vou ao banho, talvez um pouco de mim desça ralo abaixo, esquecendo a superfície da pele, limpando os pensamento. ou talvez, como sempre, depois do banho, na impossibilidade de me esquecer, eu abra um livro e durma sobre ele e num sono sem sonhos, mais uma vez eu não te encontre.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Notas suplementares sobre Dragon Ball


(Para Michele Martins de Oliveira)

É preciso entender, antes de realizar uma leitura sociológica, qual a aparência formal que esta narrativa, dado que a forma do desenho-seriado nada mais é que um modo de contar um relato, assume. É uma aventura, certamente, mas o modelo padrão escapa ao modo épico, mas se sujeita ao elemento trágico, conformado, sobretudo na padronização de uma “herança trágica”, que pode ser traduzida num elemento proustiano, como em La Recherche: nos pontos em que a narrativa é uma narrativa de gerações (no caso trágico, por exemplo, se pode situar isto na passagem do Édipo para Antígona): tem-se Goku, depois Gohan, depois Goten (ainda que no mesmo grau de parentesco que Gohan), Pan (neta de Goku) e Goku Jr. (bisneto de Goku e filho de Pan que aparece no último episódio de Dragon Ball GT).
O elemento grego aqui é salientado por outro ponto de vista, que aqui interessaria ao relato. Se rejeito a questão do épico, é justamente por deixar de lado a conformação de um ethos, enquanto o ideal de uma comunidade, para salientar o fundamento da  pólis. Há que se observar que a mesma dimensão dúplice entre homens e deuses é retraduzida na animação: uma instituição como a dos Senhores Kaio [Kaioshins], bem como Kami Sama, que são personagens (“quase-que”) imortais que decidem e estão acima dos humanos, como grandes gerentes (ou reguladores) da instituição cósmica, seja dos sistemas planetários, seja do planeta Terra, seja ainda da vida após a morte (como é o caso do Sr. Enmadaio), cujo papel é, de certa forma, uma garantia funcional.
A hipótese trágica ainda se sustenta na manutenção do mote que dá origem a animação: a satisfação do desejo. Bulma é impelida, por seu desejo por um “namorado perfeito”, na busca das esferas do dragão e  no processo conhece Goku (que possui uma das esferas). Os vilões, que de início também partilham esta busca (sendo o desejo de imortalidade uma possível tradução do conceito se soberania). De outro lado ainda, o destino geral da comunidade é posto nas mãos de um estrageiro: se Édipo, como soberano de Tebas, é um estrangeiro, não obstante seu drama é que é um filho de Tebas, temos que Goku, é estrangeiro (um sayajin), mas não obstante seu ponto de pertença é terráqueo (o que instaura o paradoxo, por exemplo, dele ter sido enviado para destruir a terra e acabar por defendê-la – na inversão de significações a partir de um significante-mestre que acabar por dar novas significações ao que anteriormente exposto, procedimento recorrente na tragédia). Porém, o drama apesar de sua aparência trágica se  resolve de uma maneira pouco grega: tudo sempre acaba bem. Solução pequeno-burguesa e idealizada em que após uma serie de eventos catastróficos a paz, ainda que por um curto período, pode ser desfrutada.
Duas perguntas então podem ser situadas nas passagens da gerações, tal como apreendidas em DB, DBZ e DBGT: se o tempo passa, (1) como o espaço configurado pela animação situa suas próprias mudanças;  e,(2) quais as mudanças estruturais e sociais travadas e encenadas na representação destas cidades?
 Da cidade rústica com dinossauros à Cosmopólis de Trunks (“o do futuro”), quais os entrechoques de representação aí? É claramente evidenciada que toda transformação histórica pressupõe uma transformação no espaço, embora no espaço híbrido de Dragon ball, tais transformações são sobretudo de uma sobredeterminação sócio-cultural. Explico: cidades ultratecnológicas, como a de Bulma, coexistem ao lado de vilas pré-históricas (o que serve como alegoria para condição do nosso mundo contemporâneo, já que há locais bem-desenvolvidos e outros que ainda, por razões culturais, mantém-se com uma tecnologia “artesanal”), fazendo com a  linearidade cronológica possa ser cindir em tempos que possuem suas próprias variáveis: tecnologia, organização humana (violência/barbárie), sociabilidade. Não apenas as cidades e comunidades que são representadas ao longo da animação variam, como os próprios planetas visitados oferecem "complexos culturais" que favorecem a polissemia que a vida (tomada entre experiência [Erfahrung] e vivência [Erlebnis])  assume (desde a-história, como o ponto observador, da morada dos Kaios e de Kami-Sama, ao momento pós-histórico do julgamento das almas por Enmadaio, que podem ser enviadas a vida, isto é, novamente à história por  Shenlong – ver o caso de Kuririn).
Na esfera da vivência, saturada de eventos e sensações, resta ao seres em questão, os habitantes destas cidades (terráqueos, saiajins, namekuseijins, etc), a capacidade de reagir a estes estímulos, bem como aos intrusos – sempre alteridades radicais e por isso vilões dentro da narrativa). Numa abordagem freudiana: toda chegada de um vilão é traumática, já que a imposição de seu desejo ultrapassa a demanda destes “pequenos outros” que tentam, então, resistir a sua vontade imperiosa. O interessante também aqui é como o conceito de humano é relativizado: já que terráqueo ou namekuseijin marcam os planetas de origem, no caso a Terra ou Namekusei, a enfática a raça aparece no caso dos sayajins cuja origem está no planeta Vegeta. Há, portanto, a retomada de um tema  biopolítico dentro de um tema darwinista: qual é a raça superior capaz de colonizar (leia-se “imperar”) no universo? – O que instaura um debate étnico , que é uma das variáveis da animação no âmbito de sua representação, já que as raças em questão se organizam em estruturas políticas,  econômicas e sociais que configuram tanto a estética (arquitetura) de seus espaço, quando sua geografia. Assim é que dos planetas rurais (Namekusei) aos planetas marciais de regime espartano (Vegeta), o degradé civilizatório se arma: há mundos em ruínas (como Alpha, na Galáxia Sul, arrasado e inabitado), desérticos (como Arlia, mas que possuem vida inteligente), hiper-tecnocratas (como o planeta-máquina Big Ghetti Star) etc.
No caso das cidades de DBZ, sua memória pouco marca destes traumas, não há registros urbanos do que aconteceu, isto se supervalorizarmos a dimensão da história sobre a geografia, isto é, o dado diacrônico. No dado sincrônico, em que o espaço pode ser mapeado (assim, a geografia suplanta a história, já que em termos o que se tem é sempre a enfática de um presente, mesmo quando Mirai Trunks viaja do futuro, por exemplo). Um dado interessante por exemplo, é que o único momento em aparece um narrador para a história em Dragon Ball é na abertura do desenho em que este assume a voz que vai assinalar em que ponto da aventura (episódio) se esta, dando um título para o “capítulo” em questão.
Há elementos que são reiterados ao longo de toda animação, que fundam a circulação dos personagens: como a ilha de Mestre Kame, o deserto Yamcha, a montanha Frypan, a ilha Papaya (onde se realiza o torneio de artes marciais intitulado Tenkaichi Budokai), a Capital do Oeste (cidade de Bulma onde fica localizada a  Corporação Cápsula, uma espécie de monopólio no mercado mundial similar a Umbrella Corporation de Resident Evil, embora os limites destas avancem no terreno dos produtos farmacêuticos, armamentos, computadores e outras atividades clandestinas de pesquisa biológica, aquela produz também elementos técnicos variados, mas é enquadrada ao estilo de um "bom modelo"), etc. Outro dado relevante é a estruturação cardeal num eco claramente cristão, já que reflete a estrutura celestial ( Sr. Kaio do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste) que se expressa nas capitais, também do Leste, Oeste, Sul, Norte e Central.
Bom, o enfoque claro do desenho são nestes heróis, marcados por uma personalidade exploradora, em sentido amplo, e aventureira. São pessoas fora da ordem social pré-estabelecida ou mesmo, para nos expressarmos em jargão marxista, fora da luta de classes. Por outro lado, expressão de um modo muito singular a dialética do senhor e do escravo, com enfoque na luta originária (dois homens lutam por reconhecimento). De profissões efetivas (liberais), pouco se retrata, a não ser no mercado anônimo ou como pano-de-fundo do desenho, como algo que dá suporte a manutenção da vida (os restaurantes, mercados populares, escolas, etc). A profissão-chave é a de lutador e guerreiro (a maior parte dos personagens com nome se enquadra aqui), o que enfatiza o caráter militar da animação, há ainda os doutores (embora não se saiba exatamente em quê) e cientistas (como Myuu, o “mau” Dr. Maki Gero e o “bom”  Dr. Brief), feiticeiros, mágico e magos (Bibidi, Hoi e Uranai Baba), monges (Kuririn e Yajirobe), professores (a maior parte dos “conhecidos” são professores de artes marciais, como Sr. Satan e Mestre Kame), mas há também personagens paralelos como Mestre Karin, cuja função não é muito clara, mas sabe-se que  é quem cultiva as sementes dos deuses [senzu beans], Mez  que é um ogro que cuida e ajuda a administrar o inferno, Nappa que é um guerreiro, mas também é o guarda-espadas de Vegeta que por sinal é um príncipe, como Ox King é rei (rei Cutelo), Pui Pui que é guarda-costas de Badidi,  como há há fazendeiros, andróides, robôs, mercenários, ladrões (Yamcha, por exemplo é um ladrão do deserto). Em meio a isto, seguem-se personagens menores que também mereceriam uma leitura mais pontual, como é o caso do câmera man que registra o torneio de Cell e o repórter sem nome que o acompanha, os comentaristas Bodoukai, Lunch que é cozinheira, mas como leitura de oposição há ainda as donas de casa Sra. Brief (burguesa) e Chi Chi (que embora seja filha do rei Cutelo e, portanto, uma princesa, age por vezes como uma dona de casa de classe média) e, por fim, o Sr. Popo, que é negro com turbante indiano, que é o ajudante de Kami Sama da Terra.

De resto, a pergunta que fica é: como a nossa cultura (se compreendermos cultura como um  Todo que abarca desde as expressões artísticas, as instituições humanas, a trama discursiva –isto é, história, economia, política, etc - a conceitos abstratos tais como liberdade, igualdade, etc) é representada? Como os sistemas alegóricos e dispares da ficção proporcionam uma leitura de nossa realidade,  revisitando seus problemas e tensões? Como dar potência crítica a animação através do nosso contraponto cotidiano? Como as relações, para além do projeto visual, demonstram estes seres relacionando-se com seu espaço e uns com outros, como isto pode (e deve) ser lido alegórica, metafórica ou metonimicamente como um reflexo da cultura (e qual noção cultural específica, já que na dimensão singular do desenho, nasce na cultura japonesa, como mangá shounen, lançado no Brasil pela editora Abril  e veiculado pela rede Globo, em 2001) - questões levantadas   nas abordagens de Sônia Luyten.
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Nota:
Este texto segue dedicado a  Michele justamente por responder a um pedido de comentário ao seu Trabalho de Conclusão do Curso de Geografia. Não tendo tido acesso ao trabalho final, mas apenas a fragmento dele, tencionei desenhar aqui um modo de operar uma leitura em suas diretrizes mais genéricas, apontando possibilidades e caminhos, apesar de não realizar, em absoluto, nenhuma espécie de hipótese teórica.  

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

(para o príncipe)

aquele momento em que se para se abre o livro, por onde começar a ler, o primeiro parágrafo, a primeira palavra, a primeira vírgula. o pensamento distorcido, a demanda de pensar mesmo quando o pensamento não quer, quando não se consegue, quando não se pode. e penso em você,  andromaque, estrela equidistante e reluzente que me captura o olhar. tu, que como viajante descuidado, navegando em águas perigosas e turvas, nestas águas impalpáveis que escrevo como no fundo de um espelho, tu, é em ti que penso. e viro as páginas. tu me dizes, eu tenho medo.  ("sorrisos", você escreveria). tu, pequeno, diante da escola, eu não te esqueceria, pegaria sua mão, o sorriso as covinhas... na mão um sorvete de pistache. enquanto o ônibus não vem. eu aqui, olhando o mar. você daí, também olhando o mar, como se um oceano nos separasse. eu me perco de novo nas referências e peço desculpas. (apaixonado por sorrisos e um bom amante de abraços). eu te escrevi minha pequena carta, numa letra torta, tu rirás, tu saberás rir quando retomar as garatujas de novo, decifrando mais de mim que a própria caligrafia permitiria. eu te sequestraria, na impossibilidade de me amares, esperando e cultivando a tua síndrome de estocolmo. final de noite, ocultos pela penumbra, fugindo até a padaria da esquina para comer coxinha. nossa trilha sonora desliza entre meu chico e minha bethânia, e sua tiê, roberta sá, daniel chaudon, dani black, jeneci... seu repertório é mais amplo, mas nos violinos antiquados, talvez o meu seja mais seguro. e ouvimos repetidas vezes, como se ouvir pudesse preencher esta distância, fazendo a exaustão aparecer ali onde os corpos não conseguem mais se tocar, não porque não se queira, mas porque esta distância tomada por espaço, preenchida pelo desejo, cartograficamente quilometrada impede. duas sombras pedalando à beira-mar. mas eu nem gosto de bicicleta. (me desenha um carneirinho?).  eu te prendi nos corredores e nas esquinas dos meus sonhos. (me dá mais um beijo?). e dividimos os corredores da biblioteca... um bom beijo é aquele de quando os livros caem, páginas e páginas, e nos sentimos vistos, jane austen, virginia, joyce, que importa? e te peço desculpas por te encher de mim quando te prometi apenas doses homeopáticas... e te segurei, nos ponteiros, pelas pontas da imagem, com peito desnudo... meu cisne não escapará da gaiola, ele não está preso. eu te fiz perder a hora, não te quero fazer perder teu tempo... este tempo que também escapa ao relógio, me dá cá meu abraço, meu príncipe que precisa de mais do que um beijo para acordar, volta pra cama... vem dormir comigo no calor da manhã?

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

eu esperei a campainha tocar. sapatinho de cristal solitário sobre o criado-mudo. mas, o sapato perdido, como o coração partido, não apareceu. talvez meu príncipe não tenha visto o recado. talvez meu príncipe tenha perdido a nobreza. o sapato agora manca e faz falta. o celular não chama, talvez ele ainda tenha meu número. nenhuma carta ou e-mail. onde estará central de reclamação. talvez os contos de fadas não se repitam entre dois garotos.  resto eu, um pé de sapato inutilizado, um desenho feito, um convite de café... posto num futuro remoto. no presente próximo: a tv, o analgésico pra enxaqueca, macarrão instantâneo e uma barra de chocolates. eu dei um salto para tentar estar perto de ti, saltei o meu próprio abismo, meu pé vacilou, errei a mão. perdi meu sapato, mas aprendi a lição da madrasta má: devorei meu próprio coração.
eu só quero poder saber se sou da medida do teu abraço.
- eu tenho um coração descompassado...
- vem, eu deixo o seu entrar no ritmo do meu...
- esqueçamos a distância, definitivamente, a partir de hoje, você vai morar na minha taquicardia!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

um pouco mais de conto de fadas, é talvez o que se precisa. trocando os sapatilhos por duas taças de cristal, olhos brilhantes, noite e estrelas. eu desejo demais. eu te pedi um abraço imerso nos teus quilômetros.  dizem que a gente aceita o amor que acha que merece, mas e quando simplesmente o amor não aparece? me perguntei estes dias acerca de um possível paradoxo, se não se sabe o que é amor, poderia ter amado sem saber? eu acreditava ter amado, eu me acreditava amável. mas quando apenas caminho, me desencontrando de mim, eu encontrando uma possibilidade impossível, sou eu que me perco, sou eu quem não sabe jogar. estou quase desistindo de continuar escrevendo aqui. escrevo como bem picha  o lado de dentro de um muro, com as frases de efeito dando para o jardim, oculta pelas rosas selvagens. este é meu espaço. eu queria poder sentir seu perfume, por uma primeira vez. te sequestrando em sonho e  te cobrando os abraços na liberdade do dia.  o que sei de ti, posto ainda no futuro, com seus grandes olhos.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

coloco mais uma vez as cartas na mesa, não tento montar mais uma vez o castelo nas nuvens. antevejo sua ortografia. uma carta não é um ás de copas, sequer um bom coringa. quanto valeu o teu jogo, este que eu perdi? quanto vale sumir nas próprias palavras nas quais sou eu quem paga o preço e é minha cabeça que rola? eu te vejo de longe, te leio de longe, não te toco. leio. e sem tocar nas cartas e empilhá-las, embaralho os pensamentos e me desencontro te encontrando como sombra no horizonte. no fundo do meu pequeno oceano eu sei que eu é que provoquei os meus naufrágios, sei que fui eu quem afundou o navio... mas apesar disto, não fui o primeiro a procurar me salvar, me agarrando a algum salva-vidas ou bote fortuito, como quem se agarra a uma possibilidade de vida. eu quem abri no casco do navio um buraco, mas me deixei ir junto, água abaixo, lágrimas abaixo, faltando ar, afogando um a um todos os sentimento que já não poderiam boiar, mas pesavam e me arrastavam para o fundo. para o fundo deste mar como um grande deserto de sombras.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

sonho

hoje, em um de meus cochilos, motivado pela leitura da tarde,  sonhei que era uma borboleta. redupliquei um sonho. fiz referência. sonhei o sonho de  chuang-tsé. agora, cabe a angústia de me perguntar, crendo-me acordado, se agora eu não sou uma borboleta que sonha ser eu.

deste ponto

já passa da meia noite, é preciso desenhar a cena do final do dia, do final do final e semana. contornar as linhas da crise. neste momento, entre cochilos mais perturbadores que restauradores, estou só. estou só num apartamento que está, certamente, bagunçado. e eu preciso limpar, mas não agora. há dez anos atrás me perguntava e fazia planos de onde estaria agora, o que estaria fazendo, só como exercício de imaginação. puro dispêndio de sonhos. algum plano realmente deu certo? daqui, deste lugar em que só posso olhar para atrás ou para estas paredes. para a tv ligada num programa ruim e cujo som compete com o ensurdecimento que o ventilador me causa. não acreditava que chegaria a este ponto, em que simplesmente os pêlos se eriçam e  corpo vibra. eu já li tantos livros, mais do que a boa parte das pessoas que conheço. eu conheço línguas que aos olhos dos outros só parecem decoração cafona de bar dos anos 70. estou na margem do limite: em 5 anos haverá a guinada. e 5 anos passam tão rápido. as vezes chego a pensar na vida como um grande quebra-cabeças esquecido em algum baú e que em vão tentamos montar sem nunca perceber que são duas paisagens diferentes e que estão faltando peças. nunca poderemos realmente ver alguma coisa.  a única coisa é tentar visualizar uma possibilidade peça à peça. sou confessional, faço diários. meus dias não tem mais tempo, estou perdido no calendário. não consigo entender o influxo do tempo, da rotina. é fevereiro, é festa, carnaval... mas eu perdi o sentido. mas nem é mais necessidade de clausura. estou só há tanto tempo quer ter uma companhia superficial, sem pretensões, já é alguma coisa. eu, o apartamento e os dois gatos. e talvez eu faça essa bagunça toda tentando preencher este espaço que dói através de mim. eu me contento com pouco. talvez este também seja meu erro. além daqueles clássicos que só me apontam as escolhas que fui tomando por acreditar no rigor de minha opinião. algumas escolhas certamente foram acertadas, à outras eu fui empurrado. eu já amei, certamente, mas não sei se já fui amado. não sei o que isso quer dizer? alguns tipos de amor me foram vedados. tudo transformado numa experiência prática, acadêmica, pensada... eu me acostumei a querer pensar e apostar minhas fichas na reflexão. e não entendo, existem coisas que a lógica não explica, talvez porque o desejo seja tão arbitrário que é como um tropeço. e talvez não se deseje um ideal, uma imagem fantasma. talvez por isso quando os deuses do olimpo desciam  da cúpula celeste eles fossem humanos no seu excesso, mas somente por terem a possibilidade deste excesso se entendiam como deuses. não há megalomania nesta questão, no meu caso, observo-a por outro ângulo. eu tentei um ponto da perfeição.  tentei criar um ideal de mim, um projeto de humano e mais que isso, tentei executar e ensaiar os passos desta experiência. não sei o que criei  ou o que fiz de mim. eu tentei me adequar, mas ao tentar fazer isso acabei me deslocando. ao menos tem algumas coisas que eu posso assinalar: eu já tive aquela paixão rompante, já tive meu capotamento, já tive meus pequenos delírios. agora, ao meu lado, o celular vibra, me espanto... ué, quem poderia ser? eu sou a meia furada no fundo da gaveta que só não foi jogada fora porque um dia foi boa, porque vai que um dia ela pode ser necessária. mas era apenas a bateria acabando. eu acho que eu espero a pequena delicadeza que todo mundo sonha, mas ninguém quer, porque alguém inventou que horda devesse procurar e se empanturrar de uma vida que não se sabe que tipo de vida é. eu pensava que quando chegasse a este estágio, oras, eu tenho tanto caminho andado, tantos livros lidos, alguns quilômetros percorridos... eu sei que sou isto, frio, armado com meu bisturi lógico. mas eu procuro, eu ainda tenho aquela ideia da casinha de cerquinha branca. eu ainda vislumbro esta possibilidade como uma realidade alternativa. mas não é mais a minha possibilidade. eu não respondo ao desejo. eu com meu um metro e setenta e cinco,  com meus olhos castanhos, com meu cabelo castanho claro, com essa pele estranha, com esta barba, com meus saltos altos, com minha cicatriz no joelho e minhas costelas salientes. tudo o que eu tenho é apenas isso e minha sinapse. mais normal que todos, eu sou a exata média do caminho. não tenho um metro e noventa e sou o galã gostoso de seus sonhos eróticos. sou a bichinha nervosa roendo a unha do polegar com os olhos vivos atrás de meu ysl dourado. eu digo que queria ter alguém, mas talvez a gente não deva e nem possa ter todos os desejos realizados. li em um livro, que não citarei para não agravar mais o pedantismo da cena, que deveríamos agradecer por não termos todos os desejos realizados, já que as vezes o que desejamos não é  exatamente o que precisamos ou o que queremos. eu gosto dos porquês. eu com meus gestos amplos e minha irritação afetada. eu que sento no meio-fio e bebo uma garrafa de espumante vagabundo... ou mergulho os dedos, na maior falta de classe, dentro do meu dry martini para catar minha azeitona. eu que gosto da minha imagem de maquiagem borrada depois de chorar diante do espelho. descobri no exercício da prática que  sofrer inventando esta dose de glamour dói, mas se suporta. delírio? certamente. mas sou eu com meu pé 37 e sapatilhas de ponta. eu que apenas observo. eu que sou piadinha.... o eterno cômico de ser mais mulher que muita mulher. sorrio apenas. algumas pessoas não entendem a violência do que dizem. do que me dizem. eu aquiesço. não há motivos para ir além. este é meu mundinho: uma estante torta que cede ao peso dos livros. eu sei que o que eu escrevo gira sempre em círculos e sobre o mesmo eixo, mas eu apenas tento escrever como um exercício de vamos ver onde consigo chegar com isso. eu escrevo (aqui) para pensar, para me pôr a pensar nisto que sinto, no que me ainda me permite deixar os pulsos intactos.  eu não sei o porquê não desisti ainda, não entendo o porquê resisto com este sorriso lateral. talvez não seja eu que deva descobrir. ai, paro, olho a mesa de centro, o livro que eu deveria estar lendo está ali, ao lado de minha barra de chocolate. chocolate ruim, vagabundo, para crises. apenas açúcar. e eu escrevo, escrevo, como o judeu errante caminha no deserto. o divertido é que este trocadilho tocar um ponto deste real do apartamento, a torá na entrada de minha porta. e eu me perco tanto neste labirinto, queria dormir, não consigo, queria ficar acordado, não consigo. as vezes acho que a cada diz mato um pouco deste meu desejo, como se lutasse para não desejar. e não querendo desejar, talvez não possa ser desejado. talvez eu renuncie demais. este final de semana encontrei, eu armado de meu martini, um ex namorado, oras... normal? não. é engraçado não poder conversar direito com uma pessoa com que você já dividiu uma cama, com quem você já viu nu... se houve uma intimidade, o que se passa nesta barreira? será que o erro é meu de apostar, de permitir escolhas. ou talvez este meu vazio seja um abismo intransponível, e eu o sinto como se fosse, mas eu pulo nele, queda-livre, mas não posso pedir pra ninguém pular junto. é um pedido grande e pedidos como este não podem ser feitos. é como querer dizer eu te amo, esperando um eu te amo como resposta. isto não vale. eu, meu cobertor azul... e a sede que restou dos excessos, dos gastos... mas, bom, tenho a sede. paro por aqui. preciso de água.  já não sei mais qual a consistência de minha angústia, qual o drama em sépia que viverei amanhã. estou cansado. sem exigências. talvez eu nunca parta deste ponto. nunca ultrapasse o meu ponto-final.



sábado, 2 de fevereiro de 2013

estou cansado, o suor escorre pela minha pele. ao menos desta vez não há maquiagem fingindo não me destruir um pouco mais. estou fora de uso e sem conserto. estou bebendo demais. inventando crises demais. mas estou só - um pouco além do mais. ontem fui a uma festa (e não deveria ter ido). o que fiz? como fiz? quando fiz? nada fiz. estou cansado. minha diversão de meia página não paga mais o investimento de mim. e observo e ainda bêbado pego os outros no pulo. disse que não queria e não podia. mas estava lá, com outro  fazer o que não queria fazer, mas fazendo com gosto demais para alguma repreensão. isto é, a falha na lógica. ontem ainda, enquanto arrumava meus cabelos descobri, diante do espelho que o que funda o sistema é o ponto desejante: é necessário que se deseje o sistema. o desejo é o fora da lógica que instaura a lógica. preciso pensar mais. mas venci uma aposta em dois selinhos, venci superando a margem de erro. mas o último minuto me fez pensar um pouco, eu preciso pensar e organizar o que houve.  não comigo, óbvio. nada acontece neste meu mundo congelado. mas por agora, resta me deitar no sofá. e tentar restaurar alguma dignidade.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

síndrome do membro fantasma
só que com o coração.
há palavras que nos beijam
como se tivessem boca.
grego, antevejo o coro
vivenciando o terror e piedade em meu lugar
nós espectadores de nós mesmos
atravessando a rua
comprando pão
tropeçando e desistindo
mas com emoções
apropriadas
vestidas
prontas para a foto.

tibetana

prendo-o
(o vulto de teu nome)
num moinho de vento
e ele gira
sozinho.
e de tão medieval que sou
não lhe ultrapassou,
meu olhar,
o colo
dos pés.
razão ou felicidade?
razão!
felicidade é algo abstrato demais
para esfregar na cara dos outros.
céu cinza
um mosquito corta rasante o ar
tiroteio de angústias metralhadas  ao escanteio
persigo com o olhos
alvo e dedos
escapa
envelope sobre a mesa de centro
envelope laranja sobre a mesa de centro
(um rei se acredita rei, mas não pode reinar)
escrevo para ocultar
cerrando as cortinas
baixando as palavras
rasantes
que não cortam o ar
nem o céu cinza

substituto do acorde de sétima dominante

em três tons,
parto ao meu meio meu desejo
como quem parte o pão
mas não tem fome
ou tem fome
mas não tem pão
o pó pinta a cara
escrevo ocultando a ruga
e a tara
das cordas com que me embaraças
no canto
meu canto
é preciso que acorde
uma outra diminuta
como se grafa?
onde se toca?
onde se troca
o beijo roubado
o fundo do espelho
todo gosto amargo
do desespero?
me abraça apenas
e não faz pergunta nenhuma
se todo deslize
fosse apenas ortográfico.
(para B.).

são quase cinco horas da manhã e resolvi escrever para aquietar meus pensamentos, quando decidi, creia, comecei escrevendo isto num de meus bloquinhos, foram algumas páginas e tentativas frustradas depois que pensei que isto não daria certo. e talvez agora você sorria o com canto da boca, torcendo um pouco o lábio.  é engraçado como você conseguiu me afetar nesta sua primeira visita. é terrível, na realidade. eu, no fundo, torcia pelo contrário, não por um bônus maior de dor de cabeça. não consigo dormir agora porque estou perdido... sem chão... droga, eu queria te beijar! eu queria um beijo teu, mas um beijo não se pede. não sei dizer se o ganharia de outra forma ou mesmo em outra circunstância. também não sei se você teve esta vontade, fico repassando seus gestos na memória acreditando ter pedido ou deixado passar minha chance. não sou nada bom em analisar os fatos em que eu mesmo me incluo como uma variável, minhas equações sobre você oscilam. a questão é que também sei que estás saindo com outra pessoa, e isto me entristece de certa forma, por saber e concatenar fato, e talvez por isso eu tenha evitado dar o primeiro passo, não ter feito nada não significa que não quis fazer, não foi medo ou receio, mas esta não é uma escolha que deva ser minha. e também não quero me pôr na reserva, algo ao estilo "não está com o outro, mas está comigo", fazendo cara de satisfeito como segundo da fila, o segundo da linha. queria talvez nesta ilusão que inventei pra mim que você me visse, eu te mostrei o que sou, o que faço, não sei o que posso ser, mas deixei você entrar no meu campo, gravitar no meu espaço por algumas horas... esta é minha existência. pouca, rala, uma sopinha que mal dá pra dois, tão sem sal ou açúcar... quisera pensar de outra forma, mas me resigno, respiro - tenho medo de não te ver de novo. baixo a cabeça, espero as coisas se resolver, o pó se acumular nos livros... quem sabe, não é mesmo? bem sei que não sou bonito, eu e minhas pernas longas, meu pescoço enorme, meus hematomas de ballet, minha afetação e marcas de alergia. eu, que cheio de livros, sabendo dizer tanto em tantas línguas, simplesmente não sei o que dizer pra ti. talvez não tenha nada a ser dito e esta seja a angústia que me amassa no canto da parede, coisa que queria que você tivesse feito. mas, trocadilho ruim a parte, que me resta? vir aqui, escrever secretamente pra ti algo que nem sequer terás a chance de ler, que talvez ninguém leia... quais os olhos saberiam disto agora?  eu olho pela minha janela e bem sei do silêncio da rua, deste silêncio que se levanta quando abro um livro pra me perder dentro dele. mas meu pulso está descompassado, como você com sua arritmia pelo café. também não tenho nada para oferecer, meus domínios são isso, meus dias confusos e monótonos virando páginas. quem estaria satisfeito com uma vida como esta? o que todos parece procurar é esta aventura pequeno-burguesa conturbada, cheio de altos e baixos, copos e pratos quebrados. isto pra mim não é vida, não é a minha vida, é novela mexicana. você foi tão gentil, que não sei se foi apenas educação. eu conjecturo demais, falo tanto quanto escrevo (talvez mais ainda porque na fala meu ritmo é mais acelerado), encho os espaços a volta de mim, projetando minhas sombras, minhas palavras, minha voz, meus gestos amplos. você, garoto, com sua quinta posição fechada, com seu dehors perfeito. e nunca fez dança. você que ficou vermelho ao ler um poeminha de piva.como dizer de outro modo, como dizer de outra forma. eu gostei de estar contigo, apenas isto. o que isto significa? é impossível dizer.... é impossível dizer alguma coisa agora, porque isto depende de ti, mas você não esta para mim agora, e talvez nunca esteja, mas e se este for o momento de arriscar, se este for o momento de tentar, se eu tivesse de ter pegado em tua mão para que seu forte desmoronasse feito um castelo de cartas... e não tendo feito isto e eu me permiti estar assim. eu e esta minha cicatriz no joelho. eu e meus cafés. e meu desenho torto. e me gabando que sabia desenhar, não te desenhei, desenhei um estranho.... talvez não se consiga desenhar o que se quer ter por perto para olhar por mais tempo, mais demoradamente... há tanto tempo alguém não existia pra mim como você existiu e uma única tarde. poderia eu ser tão egoísta a este ponto, sacrificar sua palavra por algo, por uma aposta? no fundo, todo querer estar junto é uma aposta, uma aposta no tempo, na resistência, em que se suporte... que se suporte o preso da presença, o cansaço das mesmas manias e piadas velhas que retornam sem cessar.  é engraçado como a intenção era realmente te escrever algo, mas falhei, perdi, o pulso cambaleou. cheguei a pegar um envelope e, imitando sua caligrafia de letras uniformes, escrever seu nome. talvez, e penso tanto no talvez como se fosse uma outra opção, um outro mundo...e sinto a respiração presa no maxilar, os olhos querendo se encher de lágrimas,  a ardência no nariz...  é esta falta de coragem me faz  simplesmente pausar e parar de existir por mim mesmo. e se tento gastar em tantas palavras é por acreditar que talvez na próxima linha eu possa compreender e chegar a alguma conclusão, a uma conclusão sobre ti e parar de sentir isso. afinal, o que tenho de ti? exatamente? a sua companhia e sua gentileza... mas não pense que isso seja pouco para mim, não é. é mais que isso, jamais o seria. acredito que quando duas pessoas tem de ficar juntas, isto depende da escolha delas, mas mais ainda que elas se suportem como presença, afinal, creio, que o amor, o verdadeiro amor, só possa se definir quando duas pessoas conseguem se imaginar numa posição em que o sexo já não é mais bom, em que os olhos opacos e cercados por uma moldura de rugas, quando os cabelos estão brancos ou já não a mais cabelos, quando o abraço quente durante a noite dá câimbras ou os pés gelam porque um roubou o coberto do outro, quando todas as coisas parece falhar, quando tudo parece não dar mais, quando os "120 anos de dercy dizendo palavrão" chegarem, eles ainda possam estar lá e se contentar na presença um do outro. saber que isto basta, não que seja suficiente, porque não o foi, foi corpo, foi rugas, foi dias... foi o acumulo de  um afeto que não foi bebido como água, mas que ainda está sendo descoberto, devagar. eu não sei se você poderia ser esta pessoa, mas você bem poderia ser alguém com quem eu gostaria de tentar. não me pergunta o motivo, não há razão lógica pra isso, nem eu com meus matemas e algorítimos, nem você com seus cálculos e matrizes poderiam dizer de outra forma ou pesar tal possibilidade. a matemática não responde bem e a estatística por pensar na tendência vai contra a corrente. eu  não sei o que você poderia pensar se chegasse até este ponto... o problema é que esta carta não é propriamente uma carta, já que se supõe que uma carta chegue a seu destino. qual o destino deste texto? qual o destino deste eu-você dentro deste texto? eu te prometi uma aquarela, talvez seja o que possa te dar. eu estou inseguro, inseguro do tempo,querendo que ele passe mais depressa para nosso próximo café, mas ao mesmo tempo impossibilitado, como te convidar? será que você me convidaria? como será? o que direi? ço e resta sempre, nesta minha insegurança, o que dizer ou fazer de novo ou ainda. o que ainda não foi dito?  não queria te encher com meus livros, te fazer bocejar com minha conversa fiada... mas ao mesmo tempo é isto que faço escrevendo isto, escrevendo pra você que tem os olhos vendados para esta minha caixinha posta em um universo paralelo. e que sei eu de ti além do que me dizes? no fundo, não posso dizer exatamente porque me afetas, porque te persigo naquilo que tu és, no teu corpo, na tua voz, nas tuas mãos, no toque que fiz no teu pé... no enrubescimento das maçãs do rosto. eu certamente te beijaria caso tivesse podido, mas a escolha era tua. não seria eu o predador que te traz a toca e te diz o que fazer e como agir, você tinha de escolher, tinha de ter a possibilidade de escolher me dar o beijo ou não, me dar um pouco mais de si, este si que é puro desvendamento; em algum outro lugar escrevi sobre o que eu esperava (sobre um céu nublado destes que parecem dar errado, em que tudo parece dar errado, que se derrama café na camisa, que se arrebenta as alças da mochila, que as sacolas rasgam e que os livros despencam... que este poderia ser o dia de um possível príncipe encantado), certamente não foi o que tivemos num dia de sol aberto em largo campo azul, dia quente... quente... e você suando do meu lado, me deixando entrever suas coxas... e isto foi maldade. não queria ter a ideia de caçar como quem caça pelas savanas ou porque tem fome... ou simplesmente por esporte. queria mais, queria que você estivesse aqui e quisesse estar aqui, que eu te beijasse ao mesmo tempo em que você também encontrasse meu beijo e me beijasse. em uma das poucas vezes que fui brincar de matemática, e sabes disto do tanto que frisei meu fracasso numérico, fui a pitágoras e há um momento, entre os teoremas em que o filósofo então se permite uma licença poética: ele diz que a vida de duas pessoas que se amam ou que são envolvidas pelo amor são tratadas como uma ilusão, mas não é uma ilusão ruim, cada uma, como um duplo de retas paralelas visando o infinito, só poderiam se encontrar na ilusão do horizonte que cria um ponto em comum entre elas. diferentes, jamais podendo ocupar o mesmo espaço, elas se encontram quando vistas a distância, porque não se confundem, se tocam porque inventam e escolhem esta ilusão para si, porque se vem ao longe, para além do espaço do simples presente. meio demodé para os padrões fast foods, eu sei, mas quê dizer? eu já não sei mais, o aperto continua, e sinto esta necessidade de dizer, de dizer, mas já não há nada a ser dito, mas como não há resposta a ser ouvida, eu continuo escrevendo sem parar. mas é fisicamente impossível, o dia começa a dar sinais de que vai amanhecer, preciso dormir, você já deve estar dormindo. que me resta? o teu abraço, já que nem sequer este beijo tornado linguagem eu ganho. e isto ainda me deixa mais confuso. talvez eu deva silenciar e por isto escreva, a palavras escritas não são som, não fazem ruído, são imagem sobre papel, um outro desenho, e  não podendo ter resposta, não podendo ouvir nem o eco da minha voz, não posso me enganar. não há você... por enquanto, não há. mas como eu gostaria que houvesse! talvez esta seja a grande invenção aqui e eu tenha inventado palavras para  te inventar, como aquele que és, mas desdobrado na minha ficção sobre ti e acabo fingindo que existes, no meu delírio, e que existes para mim e comigo.... sem exigências. suspendendo o jogo. apenas livro aperto, e tu, como personagem que escapa por entre as páginas, me sussurra baixo no ouvido alguma palavra inaudita e secreta (não posso escrever, me escapa), e fecho a capa, mantendo meu cavaleiro de armadura brilhante preso dentro de meu romance.

eu te roubaria um beijo, se pudesse. mas no fundo eu te roubo, nesta superfície, te entregando todas as minhas palavras.  eu te escondo nas minhas vírgulas. eu te roubaria este beijo, não por te saber em algum lugar distante, mas por passear no fundo de tuas retinas assombradas quando me olhas e sorri. e ficas vermelho. te roubaria um beijo, mas te leria um poema. um bom poema. aquele poema. talvez isto não fique a altura do meu roubo, mas nenhum roubo é uma legítima obra-de-arte, pois que é a obra-de-arte por ser o que é que motiva roubo. eu não te roubaria um beijo. eu te daria, bastaria sorrir. mas distante, sorri e permanece.  eu te tocaria os lábios com gosto de café. mas eu te toquei, na minha alucinação. você recuou.  é seu beijos que me escapa por entre as mãos, como me escapa a mim, aos meus lábios, quando recuas. te escreveria um acorde de três notas, as três notas candentes deste muxoxo levemente puxado para esquerda. eu te roubaria, mas não posso. não sei ser assim. eu te ajudaria a roubar, como carta na manga, impingindo crime ao jogo, mas crimes de seda.  eu te roubaria a tua sombra, por sobre a mesa, tocando nela você.  eu te daria um bilhetinho às 3 horas da manhã, com palavras escritas de fininho, na penumbra, pra não te acordar. eu te roubaria um beijo, mas não roubei, porque se roubasse seria apenas este e não outro. apenas um beijo roubado por mim, um beijo de tirado de ti. eu ainda não tenho o direito de te roubar sequer isto, um beijo. então apenas roubo tua imagem pelas minhas palavras, esperando no vulto tropeço, poder roubar um beijo, aquele beijo que no fundo será o teu beijo para mim.

diálogos

personagem sem máscara roendo a unha do polegar esquerdo deitado na cama, livro de filosofia ao lado, hegel. ("estou ansioso, com medo. faz tanto tempo que não tenho um encontro que nem sei o que fazer ou como agir, sempre me sinto meio idiota. e tem a tensão de querer que as coisas deem certo, mesmo que não se saiba o que é dar certo. talvez dar errado também seja dar certo. mas eu sempre sei que as coisas nunca dão certo e ai não sei porque me frustro, mas eu me frustro, como sempre no correr dos dias. nunca sei o que conversar, onde pôr as mãos, se devo ou não tomar inciativa para um beijo. ainda mais sabendo que serei automaticamente comparado, posto ao lado, na tabela de bônus e pontos. se o outro tem a língua presa, eu tenho o cenho franzido. e já entro no jogo perdendo. quantas estrelas eu mereço?..".).

personagem ubíquo armado de um copo de vodca e escrevendo tese ("não tem que pensar nisso, o outro está sabe-se lá onde e ausente de corpo, mesmo que se diga presente, como diria a psicanálise, etc. seja espontâneo apenas, mas faça-o sem se revelar demais. teste se o garoto é falante, se foro, deixe-o falar mais. quanto a tentar beijar, intua pelos olhos. mas veja: não é por nada que ele foi ao seu território...").

personagem sem máscara roendo a unha do indicador esquerdo, ainda na cama, agora celular as postos, olhos perseguindo um pernilongo à meia-luz ("sou mestre de castrar o desejo alheio, ainda mais quando a chance me é dada. sou a histérica que joga com cartas marcadas. quando isso me envolve e a questão é causar desejo: fodeu! sou o obsessivo burro que se desvia do caminho e tropeça nas palavras...").

personagem ubíquo armado de um outro livro, copiando uma citação, beberica agora uma dose de uísque ("então imagina que o desejo está despertado e não castra. e tenta analisar menos e sofrer menos por antecipação e deixar as coisas irem..).

personagem sem máscara roendo a unha do anelar esquerdo, aquele dedo em que uma pretensa aliança da tiffany's poderia morar ("é que perdi a prática e tenho de rir com isso. e se fosse um livro ou tivesse um pouco de álcool no meio disso, não seria mais fácil? bom, veremos, veremos o que acontece...")

personagem ainda não identificado, quiçá intervencionista ("confiança: se não confiares em ti mesmo, não poderás concluir com êxito nenhum empreendimento").

personagem sem máscara com os dentes sujos de café ("foi. sem beijo. mas foi").

personagem distante, entre sol e praia, interesses escusos que não sabe muito bem o que faz por aqui, mas é fonte de segurança ("o que se fez?").

personagem sem máscara com os dedos de unhas roídas sujos de tinta ("comemos, bebemos, sorrimos, conversamos. o que me resta é sempre o mesmo papel").

personagem distante sabe se lá fazendo o quê, mas sempre gentil ("pára com isso, você é incrível, pare de subestimar, você é ótimo em todos os aspectos, pare com este complexo de inferioridade, você é ótimo amigo!").

personagem sem máscara escolhe uma máscara ("talvez eu seja apenas isso, alguém que sabe algumas coisas e serve apenas para isso, para ser um bom amigo").

Personagem escritor que visualiza a cena de fora ("câmbio, desligo!").

Ritornello


A ducha

A água escoa lentamente pelo ralo, cabeça baixa. Comigo é sempre a mesma coisa. A glândula lacrimal é o avesso do ralo. O que me dói de leve, nem tão leve assim, é o que tento lavar esfregando o rosto. Choro, mas não é shampoo, a  Johnson & Johnson impediu que os shampoos ajudassem a lavar a alma. O que dói é isto que se repete eternamente. Queria entender o motivo de ser trocado, a esmo, sempre pelo mesmo clichê cacofônico de língua presa. É aqueles momentos em que uma biblioteca imponente espanta, mas no fundo uma biblioteca é só um amontoado de livros. A inteligência sempre se defronta com espelho e perde. É sempre a mesma batalha no exercício socrático da paciência, jogando o jogo de empilhar livros pelos cantos. Quando não se tem o charme o suficiente, mas se sabe palavras demais. Quando  se diz e se pisca e se sorri. O que lateja é a inverdade do fato: todos dizem que suspenderiam a beleza pela inteligência, mas no correr dos autos é sempre o contrário. Talvez até eu poderia ser culpado deste crime. Mas me recuso. Sempre recuso: digo não. O digno não! É tão pouco o que eu desejo ou anseio, mas é daquelas coisas que não se pode pedir, não se pode implorar, é preciso descobrir no anseio velado do bater das pálpebras. Aquiescer é sempre como esquecer. E me sinto tão impotente pensando nisso, porque no fundo não há nada a ser feito. Livros impressionam, mas assustam. Um bíceps sempre pode ser superado, Dostoiévski não! A falta de tato e charme dos dias, tornando a beleza comercial, vulgar, massiva e enlatada... tão enlatada que ela vem com 12 abdominais de brinde e suplemento alimentar. Quando o que tenho na despensa vale mais, meus patês,  minha geleia de mirtilo, meus queijos... o traçado do teus olhos que você não viu e sequer percebeu. Que não saiu certo, mas não saiu torto. O que dói é que um erro de ortografia é desprezado, mas sempre é visto, esta fissura que corta uma sinapse ao meio e diz "como?" e que se impele, achando-se claramente superior, mas desanda sempre e tropeça. De todo, perdi a beleza. A razão sempre vence no final, mas vence porque é fascista e uma vitória destas não é vitória: é apenas revanche, impossível vencer, destrói tudo pelo caminho. Mantendo a classe e a frieza de um bisturi desenhando na pele a cicatriz de uma dor não vista. talvez não devesse escrever isto, ou sobre isto ainda, mas é que dói. E o banho como chafariz não enche o buraco, não lava... se cola na pele como mais um não, menos um tanto, mais um borrão. E as páginas que se viram e se descolam, os livros que se desmontam, o desejo sempre cede a uma foto no banheiro da academia. Uma foto com um livro, que sedução poderia ter? À sangue frio, não Capote, não é a beleza inútil e sem o clichê de pontos de vistas... Eu e meu quebra-cabeças pela metade. As vezes seria bom não-saber e não supor-saber, me perder de mim. Mas a ducha não lava a alma, como a chuva não aquieta o coração apertado. Cena em sépia: champagne e Marlene Diettrich. Talvez seja hora de dormir pra se esquecer, o problema que acordar com mão alçada ao despertador, no vazio amplo dos lençóis baguçados, nenhum sorriso, nenhum contato, só a imensidão do quarto de paredes nuas. Um café rápido. Gole seco.  Grito molhado que escorre garganta adentro. Silêncio.  É preciso aquiescer ao que resta como última e única possibilidade: Que livro ler por agora?

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

e resta apenas não o sorriso e o destacar-se
mas o perder-se
no meio da multidão
"... com olhos da cor da caixa das alianças perfeitas (caixa tiffany's)..."

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

ex-illium

escrevo para ocupar o tempo, a cada letra um passo adiante, andando da esquerda para direita, com o tempo escoando, sem dó. neste momento estou só, só demais e faz frio. não como os frios de inverno, mas um frio de verão, destes que entre 40 graus e, num susto, 10 ou 12, que só servem  para acabar em resfriado. estou cansado, enfadado, carcomido pelo tédio.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

coisas de bailarino


(para Fabricio Callabari)

é hora de uma pequeno ADÁGIO de aniversário:
certamente ALLEGRO, vivaz, mas tens APLOMB pra isso! tu podes até dançar EN ARRIÈRE, mas apesar de todos os GLISSÉS, pode ter certeza que estaremos sempre bem, mas bem ASSEMBLÉ! entre um BALLONÉ e um BALLOTTÉ... e toda a BATTERIE, faço um PORT-DE-BRAS arrevesado, mas para te dar um abraços (sem DEMI-BRAS, mas bem ALLONGÉS), sem corações BRISÉS, quando muito um CABRIOLE, só pra dar o EN L'AIR da graça, podemos até ter CHANGEMENTS DE PIEDS, mas na hora da ELEVATION,  se precisar de uma mãozinha, tenho duas pra SUSTENTATION. mas apesar de tudo, o tempo escoa e o CLOCHE  corre... suspende o CONTRETEMPS de nosso PROMENADE CROISÉ. que possas fazer agora que sua vida saia deste PASSÉ pra um novo DÉVELOPPÉ  lindo e exibido, do qual só tu podes escolher a direção (nada pode ser ruim, até um FAILLI  é útil). e apesar de todo ÉCHAPPÈ, tu não me foges mais. que não fiques triste, ainda vamos dar muitas GARGOUILLADES juntos. quando quiser comemoramos teu aniversário comendo FONDUE ou um drink qualquer, mas certamente FRAPPÉ, pra poder executar o melhor passo destas horas: um bom pas-de-bourré.
feliz aniversário, garoto, e aproveita pra sustentar o POSÉ!
e vê se não fica SOUS-SOUS hoje!

sábado, 12 de janeiro de 2013

(para M.)

tu me pedes um verso, talvez eu não possa te dar mais que uma nota riscada num pedaço de papel. ainda mais quando o abraço não dado, quando o sorriso trocado... se perde. você e teu silêncio distante. com sua galeria de poetas. você que não me entende e ri, apenas ri. se soubesses dos meus crimes noturnos, das minhas pilhas de livros. eu que achava que talvez gostasses, eu que pensava que... mas abole as palavras. eu que aprendi que não se satisfaz um desejo, que nem sempre se quer o que se deseja. e tu me pedes um poema. me pede palavras doces nas quais eu me torno estranho, mas me faço próximo. e te aproximo tanto, que vejo no fundo de suas retinas aquilo que insiste em não me dizer. e logras, me enganas... suspende. não foge, porque nunca esteve presente. e nestes lábios desenhados, entre a lente azul escondendo o fundo do olho, entre a franja escondendo meio rosto, entre o sempre mais a oeste, mais a oeste, como quem vai desvendando a si mesmo e se descobrindo para além das curvas e da névoa depois da serra. talvez me reste acreditar no que dizes, e te dou uma nota, uma nota escrita, não um poema, nem mesmo um carta, mas isto que me pede. algumas palavras que não sei o que (te) dizem. não sei como lês, ainda que brinques de bandeira e quintana, ainda que atravesses pessoa. e creio nas almas incomunicáveis de manuel, que é preciso deixar os corpos se entenderem, porque estes sempre se entendem, se confundem e se perdem, mas almas, tudo é mais difícil com elas. e vem mário, não o meu mário, não o meu m. que me pergunta se aceito o amor como ele encara, ele que faz do amor, azul e leve, mas o teu m., o teu mário, que insiste que o amor e quando um mora no outro. mas não sei como fazer isto. e fecho os olhos para não ver. e fernando me diz, a única coisa que em termos de amor aceito incondicionamente: "vem e come chocolates, pequeno, come chocolates". mas não abandono a metafícia. e outro m. me olha, me rasga... é maria me dizendo o quando és perigoso, o quando um m é pontudo em suas duas montanhas e que talvez o sol possa nascer entre elas. mas sou noturno e trevoso. ah, llansol, de dedo em riste. e você, no teu silêncio, e eu na espera. porque não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém, compor o corpo, objeto em sua função, sejam eles boca, olhos, lábios, treinando a respiração, sorrindo pelo ângulo da malícia, olhar através do vidro, baforando com suspiros... rasgar um livro numa página estrategicamente aberta. e ter de no fim, arrancar ao meu sexo a palavra de ler que te quer e soprá-la pra dentro de ti como quem diz um segredo ao pé-do-ouvido.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

acho que aos poucos estou me perdendo de mim pelos labirintos que eu mesmo criei, por estas parede que eu mesmo fui levantando e que sei que não existem. hoje quando caminhei pelo campus, com esta fome dentro de mim, não sabia ao certo, sequer posso dizer que sabia, eu apenas fui. estou no campo agora. longe de algo, mas longe de nada. nem perto de mim. é preciso cumprir a exigência de existir. sem música de fundo. na casa alheia meu último amor foi insistentemente lembrado. na volta pra casa, na hora de fazer as malas e partir, aquele que poderia ter sido meu novo amor estava lá nos braços de outro. mas tão desconhecidos quanto o primeiro. são amores que poderiam ter sido. como as passantes, como eu que observo armado de bloco, desenhando a vida em 4/3 ou 3x4. é engraçado como insisto na repetição: estou aqui recostado, no divã, no meu velho divã de meu quarto de infância, azul royal já desbotado... talvez por isso eu goste tanto deste tom de azul. isso que poderia explicar tanta coisa também, no fundo, não explica nada. eu, armado do meu bloco, tentando escrever, os livros pelo chão, caneca de chai masala com uma larme de lait... tentando escrever para entender, tentando escrever para passar a dor. passando a dor para terceira pessoa. doendo tanto até não mais doer. talvez se achar a palavra certa, aquela palavra, mas o que desejo não posso dar. eis o limite da falta. o buraco. o salto no abismo. mas no fundo, nem sequer há o eu, o abismo, há sempre o salto que nem é um salto é um arrastar pela sucessão dos dias. tudo isso se resume numa perífrase repleta de perfume e no peso de três palavras bem colocadas que se tornam névoa pra mim. acho que não posso mais e nunca poderei. talvez nunca terei. feito para amar e impossível de ser amado.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

The Earl of Backlands, known as Sire Vizzy, the Percolator


(por André Feitosa)

Venta-se, e nada seria mais encantador. Sombras, outrora contidas pelo gás da lamparina, vadeiam quando cessa o branco-flâmula das jangadas. Tardinha, mas ele não estava com o seu kipá de outrora fresco vermelho. Era longe, nas certezas apagadas daquela semana barrenta. O calor depurou o veludo do chapéu no macio de dedos alongados. Há gaivotas que fogem dos pedestres, quase inaudível os ciganos interpretam motivos amantes do cais em suas guitarras do condado portucalense. Seu peito arfante e desinteressado, completamente à mostra, sob o trapézio casual e de botões caqui no tecido quadriculado. Aspergiu, imediatamente à chegada, o tonel de ardor solvente no azul que era murcho do mar, do céu e das janelas; ele bradou seu encanto, como o firmamento que se domina pela victória-régia, ou feito a graúna que percorre esse imenso vau onde os mortos são consumidos. Em sua aquarela estrangeira não florescem pêlos, o peito magro é como a nuvem, sem ferros, cortes ou nuances de quaisquer cuidados, não se vê a marcha bege dos brutos ou as linhas dos músculos comerciantes. Pés ao mar e concha de tamanho médio no balcão da cama, zumbido no deserto monocromático, bafo indelével da cachaça que não se intimida. Outro lugar. Por aqui, na mercearia esfumaçada da Tonha, vejo os teus chinelos caramelizados a borrar um piso de tacos soltos. Cigarros, quem sabe. Objetos decorativos de toda ordem povoam o recinto, guardiões da Ilha de Páscoa, Isís de braços abertos, shanti-dolls de sentinela, potes mágicos, tachos e relógios do sol, dragões e cangaceiros afastam-me dessas ferragens humanas. Há também machos que não exijo nenhuma cumplicidade, potros sem curral e de piroca na mão, boné de propaganda camuflando ordens e mandados de açoites. Estavas de mocassins venezianos e a serigrafia do tigre na camiseta, passeava numa motocicleta, embalado no i-pod com a vibe do momento. Na alucinação rápida do meu breu, lavei o piano como se fosse o teu corpo/ em casa, te toquei, sem jamais possuí-lo com todas as notas, e de olhos lacrados, escutei a respiração grave e melódica das cordas marteladas/ eu também rezei em você, uma novena inteira do fervor e desassossego. Prometo-te, Kaiser sem arreios, que meus dentes não iriam te ferir. Venha, ata-me aos mundos, meu nobre de alma, e pela minha boca eclodem faraós embrionários, dos goles aquecidos por homens em sarcófagos como o teu/ Sem o bigode, basta um fio contorcido desse pau/ embora, como promessa, também aceite meia rolha, ou essa rôla por inteira nas fendas e orifícios que tomei dos arcanjos. Olho minha faca, aquela da prima. Percorro lojas modestas com os seus heróis vencidos. Amores vingados nos ateliês-galerias. Café e porta-retrato imune às paragens e enchentes. Vejo que o pau dele não é lá grande, mas poderia, no estalo e no improvável da terra erma dos romançus, ser meu-e-dele. Não peço tanto: meus lábios urticantes dissolvem tecidos, fluidos, impulsos elétricos e proteínas do manto de sêmen em um todo-amarelo suave e adocicado do mais espanhol dos melões. Do pé d´água que escorre, misturo e pincelo com cerdas de porco, revela-se o opaco silencioso dos prédios, seis, oito, apenas e escassos; dois ou três, pavimentos artesanais e cômodos reduzidos. Deixa-me no frio da estiagem, não tem encontro; logo à frente do açougue, entre fados com essas mulheres acasaladas e descontroladas, busco-te nas estrelas. Recuo da janela carpideira, e não permita que o frescor inchado dos violoncelos alcance-me, calque-me. Madrugada, noite sem o banho nu: “Seu Ògún, Beira-Mar, o que me trouxe o mar?”. Souvenires em línguas que não me interesso. Há pelicanos como que de vidro incandescente, é o nascer do sábado. Bicos longos, pés abertos com gentileza e equilíbrio – manhã onde o cavaleiro-bailarino desliza ereto e saciado nas areias. Revoam antes da queda que ele provoca nos encaixes daquela vila de parede escamadas. As pedras não se acostam pelo acaso da morte, adornam as ruínas abandonadas e sustentam os afrescos desbotados na contra-capela do vosso padroeiro. Vais mexer com o santificado? Ainda ébrio, deixa-me salivá-lo como ao teu saxofone. Sem ar, fora do ar. Queria te beber, como insinuo minha traquéia pela cauda espessa do chocolate vaporoso. Degusto, pelas migalhas do vagar; do excesso que roça minha garganta, cuspo o remanescente na taça melada, oleosa e já sem função na cozinha. Organizo a colher do plástico sujo, ângulo reto com o pires vulgar de supermercado que te fiz o favor de quebrar. Leva-te com o sol já plenamente refletido, porque o cabra não deve ter medo do pedido. Resta-me o sal que alastra o imperturbável e despeça a magia. Caminho, assento-me ao lado de uma sanfona com triângulo enferrujado: emboscada lírica do meu baião! Na tarde, sou parte no lamento entre o gradil sujo, flores poluídas na maresia e a vendedora com o lilás cansado no avental. No descampado desse telhado, sozinho, ainda vejo lírios e jasmins abundantes. A cabeça do meu pau escapa ao pijama listradinho de algodão – não quer coisa alguma, senão brincar junto aos passarinhos do poente. O caseiro foi embora, é feriado. Meu irmão não virá – sem descanso fácil. Estreitas serão as vielas, as cavalgadas. Tenho fome. É noite de baile no Solar ao pé da colina, anunciada sob o lacre de cera quente na correspondência dobrada. Cambeio a sapatilha gasta no couro de jegue, a terceira nos tamanhos que localizei para o mercado dos dias. Calçado na pele de cobra esverdeada, bico fino retangular, pequeno luxo manual. Um cravo branco no alfinete, linho com bordados de renda da madrinha. Reflexos intraduzíveis no céu que omitem o futuro. Não me tocas, mesmo, e, sobretudo, com o teu olhar de relance. Há passos silenciosos no escuro da lua. Não me ame, especialmente e, por favor, não me queiras com tuas loas. Sigo, sem qualquer confiança no caminho impreciso. Obsequiosamente, afasta-me o beijo que foi só teu. Desde outros tempos, no mesmo salão de poucos livros mofados, escuta-se ao mar assustado. Sua Graça, o anfitrião irreconhecível das narrativas épicas que imaginávamos, transita com familiaridade entre os seus poucos convidados, alguns de família – vê-se aquele homem ornado por uma casaca, o mais fino capote real em pescoço de raposa. Qualquer coisa discreta, lenço cortês de seda no bolso, pequeno broche na lapela, cálice pintado, prataria a perder a data e seus bordados renascença. Era o secretário da então Viscondessa ao telefone, no desjejum, sete meses atrás. Caíram-lhe os títulos com a revolução. Hoje, vestida com a neblina, e suspensa pelos nossos destinos amaldiçoados, abraçamo-nos por uma valsa enternecida e triste. Minhas pernas raspadas com a sua meia fina de seda. Outra vez, é a lembrança do punhal que nos buscou e, agora, tange os nossos reencontros pelo toque da cavalaria. A mais formosa, e única irmã, cujo singular do amor arrastou-me para a companhia na ilha ensolarada dos jaguares. Ele também veio, trouxe rosas holandesas no cesto de ofertas. Seu convidado de cachos elegantes, um homem Askhenazi, o dourado encaracolado da orelha direita, ou um dread estilizado pela história. Perdeu a mãe logo cedo, a filha do Duchi. Cresceu longe dos ortodoxos, e no brinco esquerdo ímpar, tem um puro diamante cor-de-rosa, que de uso-diverso pertencia ao anel do seu avô. Fugiram no entre-guerras de algum tempo. Aqui, ali, e mesmo acolá, ele preza a liberdade de não ser ninguém. Desertor, com porte marcial. Chegou recente ao ilhote de modestas proporções. Sabe-se noivo, viajante e anestesiologista: observa, como nas horas livres de fotógrafo, as criaturas e os objetos postos a dormir. Veste um colete sóbrio de pele, aberto e peito tricotado. Anel, botinhas, botões, fivelas, ferrolhos: friagem nas costelas. Com as velas dispersas ao caminho, seus olhos revelam-se tristes como a doçura crística d´além mar. Sem cruzes. Sou dele. Estamos molhados, bêbados e trazemos o mar e os roçados conosco. Disse que eu poderia aguardar as procissões da manhã nos sofás das instalações que ocupa. Não me importo – dizemos um ao outro. Às vistas, próximo ao abajur, estão as abotoadores e seus prendedores. Troco as minhas com as dele. Senta-se numa cadeira larga de confortável madeira crua, varanda com portas abertas e talhadas, ele traga à sua própria fumaça. Absorto e cansado do fiteiro, com as pernas cruzadas, talvez jogada sobre a outra sem qualquer esforço. Você continua lindo, penso. No banheiro, molho o rosto onírico, cheiro de algas arenosas, vejo que perdi algumas gemas da camisa. No espelho de um palmo largo e redondo, ele está com a minha abotoadura – carregada de séculos, vidas e bruxarias. Achas que tenho cara de veado?! Aparentemente, hora de dormir. Contenho-me da risada. Dizia-nos, a pouco, entre homens e conhaques de sua preferência, que jamais soube como permutar águas correntes por esse lenço que amortiza o íntimo do seu corpo sujo. Cheguei, de braços dados à madamme, e escutei que certo moço, por hábito do leste, entrega-se aos banhos completos no lago da propriedade quando seu corpo abandona os dejetos. Pensei no cú dos príncipes – no dele, em especial –, como tapete de pigmentação fleumática, felpudo e impoluto, a ensejar uso e passagem das bigas de Cícero e carruagens de Louis. Isso dispensa papéis. Mas só pensei. “De onde tu vens, afinal?”, chancela-me. “Do Sertão, no pau-de-arara”, replico. Ele sorri, de um modo pouco familiar, quase arisco. Ri sem pressa. Um ventilador uiva com a quentura desconfiada e idiota. Saudades desse olhar puto que me enxerga outro mundo. Pergunta se me reconheço nos códigos da África-Mãe, ou dos mouros. O moço de feições célticas sabe de algo, alguém dos tropeiros que debulham aos livros. Mas o que te sobra de prudência, beibe, quando perder a roupinha e o cabaço com esse mestiço da colônia rebelde? Um sopro longo do mar. No dialeto antigo, nos batuques da Angola no século XVIII, Muceltão, decepada em Celtão, corrompida no vosso Sertão: ele gosta de palavras. Todos os picotes de segredos cortados espalham-se, pequenos e muitos, brancos de contraste, nesse ladrilho turvo onde ladra a noite profunda. A mulher grita que ele não é bom para ela. O Zé-do-Caroço anuncia o alarido por Dom Jorge. Estou em outro lugar, por certo. Caixote pequeno, meio valise de cabra. Esbarro. A urina espessa do cachorro abriga-se sob aquele baú deixado para trás. Pés molhados com o suor próprio. A indolência cômoda do cachorro não se adestra como o rangido do tempo. Ela não já não o enxerga e, decorre-se, que não precise arear o verde da secreção no seu lado da cama. Convenço-me que não são minhas responsabilidades: urina ou limpeza. Esse baú, meu também não é, afinal, morreu sua inquilina. É de um couro velho, ambos, o do baú e o daquela dignatária, carcomidos do tal prurido de mijo e sua nódoa que se fulcra no espelho do chão. O braço do asseio não alcança o pequeno cômodo recortado por quatro colunas, embora vestígios da piaçaba campestre também ali se acumulem. A poeira avoluma-se, aderida feito mingau no entorno dos pequenos vasos, invertidos e de um plástico quiçá resistente. Um deles, em desequilíbrio..., de bordas já retorcidas – quem sabe pelo banho recorrente de intimidade líquida das espécimes e animais. Perdem a chave, que era em bronze. Também não funciona trancar a porta. Há pregos que desenham o couro dos objetos com figuras de pouco valor. Há iniciais que se perderam nas longínquas memórias. Dentro, o tecido de chita que forrava a madeira e outrora adormecia o transporte do redário, esse também já queimou pelos séculos. Rasgos, musgos de outros dias, buracos na própria madeira desgastada. Duas argolas projetam-se nas laterais, embora se antecipe o desuso pela rigidez áspera que freia qualquer toque gentil. Há tanta poeira que as superfícies estão lisas e desbotadas. Imagino que não há nada dentro. Assim como na caixinha do viajante, parente dessa madeira. Há um tarro de cortiça portuguesa em algum lugar no caminho dos cegos. Uma moldura silenciosa para o colorido de uma pintura aborígene mexicana. Arca de madeira e azulejos azuis. Dispersas, também esculturas totêmicas, todas de madeira como as máscaras de girafas e elefantes. O santo, os protetores e um baobá, com duas voltas de marfim branco em uma corrente. Espada de índio guerreiro, madeira com ponta. Tambor de ritual, maracá com penas negras. Jogados, quando poderiam estar no baú. Agora, o peso desse ferro de marcar fecha e inibe qualquer movimento. A luz do forno na cozinha queima. Por menos trabalho, fisgam-se homens pela doçaria conventual, rebuçadinhos, envenenados: religiosos em travessas. Oferecem-se Bolas de Berlim para os aliciados, doces com gentileza e creme de pasteleiro. Fecho a portinhola, e as folhas que adentram pela janela são migalhadas. Fudemos, não sei a quem, ou de que modo. “Te fudi”, ele me diz e um grilo pia, feito matraca, feito rabeca, feito pandeiros. Entre cadafalsos de sonhos, diz que não escolhe ou faz distinção, aprecia o mistério nesse fator aleatório da cada~sempre~nova~vez: que o mar traga-lhe um rosto que por ele se apeteça. Queres uma luva para os teus cinco de paus? Ficas ou guardo? Porra de ilha. Mentiras-entre-mundos: dê-me os centímetros, e não as horas. Estremeçei aos dicionários: ai de mim e do meu céu... e não o tomo por vossa mercê; não se dignas, afinal, à corruptela no meu já saudoso “você”. Garoto, que partiu. Doravante, és esse tu indefinido, um tu particularizado e atrevido, e por isso íntimo e próprio. Dá-me a licença, vou lavar o rosto que tu perturbas. Sem espelhos. Pegar a mochila de rodinhas, guardar os meus papéis e o meio século de maquilagem. É verdade, e cruel verdade, que “você” apenas existia no meu sertão desgraçado e distante. Desço do meu círculo mágico, barulho na escada cambaleante, afasto-me da posição onde procuro a tudo que não encontro. Lá, ou aqui, não sobra camada de ti quando..., quando eu, quando tento, quando me recobro que estive ao teu lado e sozinho, e recupero, e assumo, que foi sempre, uma versão apenas de mim. Desço pela cabeceira do rio. Desenterrei o corpo dele, jogado nessa cacimba. Encontro o cacho finado desse último dourado. Sinto a dor, trinco, e não é do músculo cardíaco. É no pé. E não é Aquiles. O contato nesse encontro junto à dor mantém-me fincado à superfície, ao barro e não jogado às águas. Coloquei-o, pela última vez, na água quente, para ver se o couro largava desse cheiro habitual e impregnado por mulher. Pedi que me fizesse o mapa, onde estávamos naquele momento do zodíaco? Quando me falas do Muceltão, puxa-me ao barro que, eu, retirante, abandonei. Não voltaria e matar é o destino quando os caminhos serão vazios. Queria um bosque de sequóias no meu sertão para elevar-me dos vaqueiros, do cangaço e de conselheiro. Foice na mão, léguas de ouro no baixo e médio Jaguaribe. Se queres mostrar como és macho, porque balanças a merda desse caralho amolecido? Tenho sono dúbio, e preciso mesmo dormir, e trabalhar pelo comer. Seguir. No Muceltão, garoto-alvinho, você já não é marrano, cortaram seus fios em caracol, não tens o requinte que investi e não és o herói da saga. No Muceltão, onde não há imaginário teu-e-meu, morreste à tua própria sorte e não interfiro com juras medonhas. No Muceltão nunca houve o seu corpo perto do meu, e não haveria, também, ilhas e valsas. No Muceltão, o que nunca foi “meu”, castelo de areia, castelo de cartas, p,a,l,a,v,r,a,s, dobraduras... perdem-se ao sol. Se é ruim!? Mão esquerda no peito, o meu. Batidas. Vou até o banheiro, e da gaveta escura, imóvel, fisgo do covil aracnídeo, trago a embalagem transparente do óleo com fragrância de açaí e propriedades emolientes. Ganhei há tempos. Está coberto de poeira, com uma textura condensada na parte superior; e, abaixo, após o suave degradé, vem aquela porção que seria a mais próxima da água solúvel. “Agite antes de usar”. Misturam-se tempos e camadas. Gotas do produto, quando findo o banho longo, tornam-se aquecidas no contato com o meu corpo já velho. Esse óleo de 200 ml. e o meu pé luxado, embora esquecidos ou maltratados, ensinam-me a descer da cumeeira quando estiver cansado desse gritar pelo delírio que foste para mim. O que sobra de ti,/ canalha-eu? Sou dele!? Ha-Ha, e há ele? Não desisti, do primeiro mar, da primeira voz, do primeiro pau, do primeiro beijo, do primeiro sexo: apenas quero viver de outra brincadeira. Daqui, resta-me um pouco, que não é tudo, e um muito, que não é assim pouco, onde eu, tu, eles e elas, podem se conjurar de outras formas – há mais e diversa literatura bestial. Viajar para o Certão que é também litoral e continente. Busca-lo, e sei que há muito partiu. Madrugadas onde aprendi a decompor letra por latrina. Encontrei gente fascinante, como sempre encontraremos alhures. Sobriedade náutila: “vostro schiavo” – escreveu-me, antes de nadar, como um grego. Um homem. Partiu em minha direção movediça, uma túnica empertigada ao seu corpo. Lindas serão as forças do tempo. Sabemos que as bonecas de papier mâché estariam longe das samambaias no jardim da minha avó. Não houve tempo para Istambul e Amsterdã, presentes na mistura do seu corpo desde o mais longínquo passado. Seis cartões postais, Rio, Zurique, Bucareste, Praga, Budapeste e Viena. Tomou-lhe os braços à passeio, ele sem roupa alguma e um lenço no pescoço. Chapéu lilás da Thorrè, música de câmara, uma névoa gorda. Sobre os tacos no assoalho encerado, a valsa infinita do amor entre dois homens – touché, lascívia e lentidão. Cópula nada obscena, afinal, escuta-se ao francês com a pesada inflexão da aristocracia russa e morta. Descerrando os dias lânguidos no mármore, os dois na renda da mesa vestida com a eternidade. Abotoar os punhos, conhaque da maçã pós-coito: e charuto na valise onde não se fuma, e dançar sem desleixo onde não se requebra – aos violinos, com as mãos dadas. Quando a morte quiser sair das nossas bocas, gratificá-la para que tarde como o retorno do inverno. Confeitaria, outro lenço na volta ao pescoço marcado. Meias, bolsa, maquiagem, saltos – ele realmente está lindo. Não o vi de cinta-liga quando se alinhou junto ao preto da meia-cauda: suspensórios fora dos ombros. Afinado, afilado, afinação. Acima do tapete, ar fresco, chambre de seda... lençóis desperdiçados. Cabelos úmidos. Mãos no bolso do colete, aturdido. Grade fechada pelas gansas, chapéus ou penteados? Esse mormaço não corcoveia o ar-refrigerado após os banhos frios. O celular dobra, trinca, quatro vezes, enquanto toca disperso. De pé. Colarinho de pontas dobradas, beijos afogados nas c-cerejeiras a-agonizantes, pince-nez e lenço que soluçava fora do bolso geográfico. Parada. Ali não é adequado, não é pertinente, embora condescendente à barba de senhorio. Restaurante aceitável e não faz ruído. Teria imenso prazer em pagar-lhe pela chateação, pelo tempo e aborrecimento, pelo impropério. Peço-te desculpas. Vazia, a cadeira está ocupada.