sábado, 16 de julho de 2011

aviso prévio

começarei a estudar no corpo morto, a língua morta. você me olha de lado. esquece. pendura as chuteiras. aqui: sapatilhas a um canto. verdade doendo como fome. eu queria, mas não posso. releio a odisséia. penélope tinha coragem. você assistindo xuxa entre os livros. não posso mais. procuro as tabuinhas de argila, você tocando o universo numa digital. minha elíptica não cruza com teus satélites. eu te desenho. você me desdenha. não posso mais. tenho aquela dor no dente que pesa como angústia. faço o laço, tranço minhas incertezas. há ética no ornamento, embora não acredites. dizem que sou viciado em palavras. não vejo as palavras, mas aqueles espectros que atravessam. quanto tempo eu te pedi? um túmulo, uma lápide. 30 dias de trabalho nos andaimes que sustentam qualquer possibilidade, mas nunca pra cima, nunca pra frente. estagnado e estranho aos teus olhos escuros. um pequeno reflexo no gelo que resiste na flor do jardim. quatro horas da tarde. o tricô que faço te apaga um pouco. o desenho que faço te esquece ainda. estou sempre a passos de uma pá de terra a mais sobre o cadáver estranho, mas sempre seguro a corda, que me alça, que me iça, do abismo. deslizo. erro, como quem cria um código nos vacilos da ortografia. mas você saberia o que escrevo pra ti? saber ler. tens a chave? a máquina da morte ainda gira sempre um pouco na manivela da sorte. roleta russa. sorteio de milhões. chove. assim, como as palavras e letras que se agarram e lutam, minha mente se segura no corpo, no corpo, no retrato, na moldura torta manchada de vinho. quando um sorriso ainda? dobre a esquina. siga reto. andaremos de ônibus no aberto do espaço. te encontro no aperto do abraço vazio. o cheiro do bolo pronto no forno. qual a realidade? os sinais químicos e difusos pelo cérebro ainda continuam. supro com as pílulas. durmo. queria dormir mais. não sei. anseio. talvez seja hora da moratória. tua moral, minha ética. não acreditaremos nem em Deus, nem na matemática. a poesia como única abordagem possível. preciso de mais. cálculo. graficos. tudo resumindo a repousar o livro na estante, aprisionar a letra na carta, a dor do instante. eu me repito. como os dias se repetem. o que diferencia um domingo de uma segunda-feira? qual o teu limite. não nos importaremos com a gramática nesta nossa língua esquecidade. línguas trocadas num beijo. a dislexia na ponta dos dedos, descobrindo mamilos, braços e coxas. decifra-me ainda. agora. a linha curva do horizonte, teu olhar. aqui, o escuro apagado das mãos vazias e da boca que espera.
a felicidade reduzida a dois comprimidos
de fluxetina.
em assuntos do coração
minha experiência é amadora

dilema

a física diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço...
porém a psicologia diz que dois sujeitos podem ocupar o mesmo corpo...
viver:
apostar num jogo
sem ganhador

I

viver:
uma aposta
de um jogo sem fichas
jogadores sem rostos
em que o vencedor
não participa
e
eu que desisto
e só posso
te dedicar um beijo
complexo
no silêncio
destas obras
completas.

composição

encontro um novo personagem pela rua, amarro-o numa primeira frase, o impacto na fricção desta primeira palavra, dou-lhe o trejeito, sempre fino e de gestos amplos, sempre mais pensamento que corpo, um corpo que pensa como pensamento que é corpo. depois do primeiro nó, a página... o esboço, as primeiras cores, aqueles amores, mas quase nunca eles amam. se desesperam. não seguro. primeiro parágrafo atravessando a rua. redefino, até não reconhecer o separado da primeira palavra à sombra descolada no reflexo. sua historia: tomo pela mão, a corda no pescoço, o evento. há que se ter um bom evento. ali quando a matemática falha. ipsis litteris. tudo tem acendo, tudo dobrado, tudo se agarrando nestes segundos erros. depois lhe encontro tom e timbre. ressoando na madeira com o infortúnio do relógio, mas é preciso perde-lhe, tirar dos olhos a venda, fazê-lo andar, que ele seja para além das minhas primeiras vontades. e brigo com ele. e tenho vontade de matá-lo. e assim é história o personagem me escapa, enquanto tento persegui-lo para prendê-lo numa gaveta, num volume pesado de mil páginas. mas ele é mau. eu, cruel. assim, ambos nos prendemos. ele ganha um nome, eu perco o meu. no desencontro o repugnante do impossível. duplo. contraste. passagem massageada por um tambor de 38 lançado ao ar. quantas balas? quem morre? sem definição a prova: revisão. vígulas, gramática... que nada tem de gramática na vida. sem frase. a vida só basta até este ponto.
com o lápis negro traça o destino dos olhos, oblíquo a verdade: nem cigana, nem dissimulada. mulher aberta, sincera... a mais sincera e sem segredos. tira a aliança da mão esquerda, passa-a para a mão direita. onde muitos veriam crime, há a opção. onde muitos vem escolha, antevê a causa... espera o efeito. os lábios vermelhos como um assassinato. os espelho quebrado em fúria, mas os 7 anos de azar vem pela garrafa de bom vinho, raro aroma, lançado ao lixo, regando o resto de comida jamais tocada. o atraso. a cena. a cortina se fecha. notas na calcinha. quanto vale um corpo? quanto pesa o desejo?
3 da manhã, a ponta dos dedos desliza sobre a cocha branca, desperta. primeiro a ponta do pé toca o chão, seguida pelo calcanhar. passo de gradiva. o sonho desperto é como pompéia acordando no inundar das chamas. nero ainda toca violino na janela ao lado. o que ainda posso te pedir? eu ainda te estresso. o que ainda teremos em comum? as coxas nuas, o dorso aberto, coração (como o de antigas imagens da catedral que frenquentava) está exposto. qual o perigo real?

terça-feira, 12 de julho de 2011

Quem somos na escuridão

(Em diálogo com Pão com presunto e suco de abacaxi, de Rodolfo Previato).

“Para o outro, distante”.

O velho solar minava os passos e a sanidade. Há muito tempo ele já não saia de casa. Um bairro novo se erguera em torno do velho casarão. Prédios, primeiramente cinco ou seis andares, depois dez ou quinze e logo já não podia mais contar. Havia o labirinto, a catarata, a miopia e vertigem. A poeira se acumulando com o ranger das portas e dos ossos. Ele sabia, ele soubera, tanto quanto pode suportar. Quando os prédios o prenderam, recolheu-se.

Todas as manhãs (se é que poderia saber das manhãs, já que a insônia e as cortinas cerradas lhe impediam as horas) descia as escadas de mogno vermelho e carvalho branco, habilmente talhadas, envolto em seu robe de chambre, seda chinesa, azul turquesa. Ignorava os jornais, o telefone jamais tocara novamente. Com as mãos rijas erguia a mesma delicada chávena e levava aos lábios já enrugados. O doce do chá entornado numa dúvida amarga. Um tempo regido entre o descer das escadas, o chá da manhã, quase britânico, às cinco da tarde e o ronco ritmado da máquina-de-escrever que ainda se mantinha, fiel escudeira, sobrevivente.

Todas as noites, noites dele, uma moça entrava na casa, manhãs dela, deixava-lhe mais papéis ao lado da máquina, recolhia os escritos do dia anterior, uma nota sobre a escrivaninha, uma assinatura arrojada para quem usava um vestido novo e de péssima qualidade, bem como sapatos sempre arranhados.

Nos prédios em torno nada se perguntava sobre a estranha rotina daquela jovem que entrava e saia do velho casarão, mas muito se especulava sobre quando ela venderia, cedendo assim aos impulsos imobiliários, e quanto valeria o terreno. Pouco se suspeitava sobre esta existência insistente.

Meio-dia, não sabendo bem o porquê, ele desceu antes do devido e encontrou-a sentada em sua poltrona predileta, a dele, o pé direito insistente fazendo vezes de ponteiro de segundos, o salto arranhando o chão da saleta, as unhas roídas. “Senhor, não sabia o que fazer”, disse-lhe apontando um envelope sobre a mesa. “Sim, senhorita…”. Talvez não soubessem um o nome do outro, ela sempre pronunciara errado o nome dele, e ele não sabia bem o porquê dela tê-lo esperado acordar apenas por conta de um envelope que ela poderia ter simplesmente deixado lá, mantendo a ordem e a simetria.

Ele pegou o abridor de cartas da gaveta, num movimento firme para suas mãos trêmulas, não do nervoso, não sabia o que era isto, mas da idade. Folha simples, papel não timbrado, sem selo ou sigilo, assinatura mecânica, um suspiro irrompeu como única expressão possível.

“Aguarde-me, por favor, preciso ainda de um préstimo seu”, dirigiu-se a ela.

Ele andou até a biblioteca, alisou a máquina de escrever, “não…”, dirigiu-se até a estante, sacou de lá Mrs. Dalloway, a Londres de Virginia Woolf, abriu, colocou o envelope lá, retirando uma velha fotografia em preto e branco com dois rapazes em traje de campo. Parecia que os lábios tinham se crispado em um sorriso, talvez não. A memória podia trazer golpes em suas falhas. “Te voglio tanto bene…”, parecia ouvir ainda. “Laissez-faire”, murmurou, “laissez-faire”.

Pousou o livro sobre a escrivaninha, abriu uma das gavetas, retirou de lá um papel amarelecido, guardado, papel firme, timbrado com três pequenos miosótis de um azul déspota e desbotado, deste que não se dobra ao peso da letra, retirou sua pena e escreveu em rabiscos largos, mais desenho do que palavra, o negro da tinta sob o pálido do papel. Dobrou em três, revirando a aba com o destinatário para o lado de fora. Talvez ainda fosse possível escrever algo. Enquanto escrevia lançava olhares sobre a fotografia. “Io vidi li occhi, dove Amor si mise quando mi fece di sè pauroso”.

O que se passara realmente, entre Paris e Milano, entre dois territórios estranhos, ele capturara no silêncio daquela casa, na caixa de chapéus embaixo da cama, onde guardara os postais, as cartas, os diários… os esboços daquele rosto. Lembrava o painel que inventara e queimara na fatídica noite em que ambos se calaram. “…Geschichte…”. Quem desistiu primeiro?

A garota na sala, o senhor na biblioteca, ambos sabiam que havia um terceiro ausente que era presente demais, enchia a casa, que a obrigava a permanecer ali e ele a escrever. Ele sempre escrevia. Escrevia como o judeu errante vagava pelos desertos, para preencher os mapas, para mapear as idéias. Errava na sintaxe agora e tinha sede de outras palavras – água de deserto.

Escrevera demais, bem o sabia. Não tinha tempo. Ele decidira que ela mesma iria entregar a carta. Amassou o papel e o lançou à lareira apagada. Um estranho djinn ressurgia ali, incendiando a escuridão. Era preciso… a arritmia do seu peito era um interlocutor infame: não se podia esperar mais.

Síntese sempre havia sido o problema dele, esperava demais, sabia que algo se perdia ali, na carta enviada, entre excessos e vazios. Como dizer? Como saber-se entendido? Sacou outro papel, numa letra agitada, os rococós se abriam tocando os miosótis: “Da única maneira que eu poderia dizer isto: Szeretlek. Sublinhou a palavra estrangeira. Só os dois saberiam. Ou esperava que o outro lembrasse o sentido fragmentado. Era mais que um jogo às escuras, mas vidas nas sombras.

Voltou à sala, estendeu a ela o papel, dobrado com o mesmo requinte anterior, o livro, a fotografia e uma pequena caixinha que tirara no último momento da gaveta. Pálido, dirigiu-se a ela: “Clarissa, tens teu nome por conta disto”, apontou-lhe o livro, “a história é minha, o livro é seu, a escolha de teu nome é dele…”. Era a primeira vez que ela o via sorrir. Era a segunda vez que ele sentia que sorria num curto espaço de tempo. “Entregue a ele isto…”, deu-lhe a página dobrada, “e isto… “, entregou-lhe a caixinha, “diga-lhe que é a única maneira de dizer-lhe isto e que espero que ele entenda… é a última página para o caderno verde…”. Ela aquiesceu.

Levantou-se, recolheu o que deveria levar, deixou os papéis brancos novos ao lado da mesa de chá. Desejou-lhe um bom resto de dia e disse-lhe que voltaria na manhã seguinte. Saiu trancando a porta da frente com a chave que sacou do próprio, não se esquecendo de dar três voltas até ouvir o clique característico.

Ela não entendia o que acontecera, talvez ninguém além dos dois pudessem entender. Era como se eles estivessem jogando uma última partida de xadrez naquele momento, em que apostavam talvez o resto de sanidade ou de vida. Ela não sabia que poderia haver algo mais, escondido naquelas palavras estranhas que ela não entendia. Seu pai, a quem levava os pertences, a obrigara as finanças. Virginia Wolf lhe era apenas o personagem que dera um Oscar a Nicole Kidman. Agora aquela palavra estranha, como deveria pronunciá-la? “ ezêrétlêqui, arriscou, zêretléq”. Curiosa, abriu a caixinha, uma espécie de aliança que trazia gravada em seu interior “220”. De números ela entendia, mas aquilo não lhe fazia sentido. Enquanto tropeçava em pensamentos entrou, no metrô. Talvez o pai lhe explicasse algo, talvez não.

No casarão, o outro, acabava seu chá. Subiu os degraus. Já no quarto pegou a um canto um grande vinil e pôs a tocar na também velha vitrolinha. O outro lhe dera aquilo. Antes de deitar-se retirou da cabeça, ao lado da Recherche de Proust, um pequeno anel, observou-o: “284…”, repetiu em voz alta.

No escuro então, respiração pesada, tinha sono pela primeira vez, sem precisar ceder aos remédios. Os pensamentos ainda cavalgavam velozes. “220… 284… um amuleto feito em números… 17.296 e 18.416… Fermat… 9.363.584 e 9.437.057… Descartes… 1.184 e 1.210…. Paganini… ….”. Ele também gostava de matemática. “Isto é o que somos na escuridão…”.

Deixe estar. “…Aufheben”. Talvez o outro lembrasse ao menos o outro nome dos miosótis.

“A dúvida é sempre o que mais dói”.

Em torno disto, os prédios ignoraram todos os detalhes, até mesmo o topo do Edifício Copan.

Num trem noturno para Paris alguém folheava The metal and the flower, de P. K. Page.

“Pão com presunto e um suco de abacaxi”

(Por Rodolfo Previato)


Ele descia a rua de paralelepípedos diariamente.

No bairro velho da antiga cidade, com seus casarões quase caídos, suas calçadas péssimas, sua iluminação precária. Aquele cheiro estranho que dominava as esquinas, invadia os becos, controlava os moradores. Aquele cheiro tão diferente dos demais cheiros da cidade, aquele cheiro que dava exclusividade para aquela vizinhança. Nada no mundo era como aquilo. Alguns diziam que não, que toda cidade velha tinha um bairro como aquele, com um cheiro como aquele, com pessoas como aquelas que achavam que seu bairro era o único no mundo com aquele cheiro. E ninguém sabia de onde vinha ou do que era aquele cheiro. Era o cheiro do bairro.

E ele descia a rua de paralelepípedos, sujos e úmidos, escorregadios. Ele descia diariamente. Menos no domingo é claro, domingo é dia de descanso. Ele descia quase que diariamente a rua com seu terno de brechó, seus sapatos pretos de liquidação, brilhantes de tão engraxados. Seus sapatos eram seu orgulho. Com sua gravata listrada comprada na 25 de Março, ele descia para o inferno.

O inferno. Assim os nativos do bairro velho chamavam o resto da cidade, pois no resto, na parte nova da antiga cidade, onde as ruas não eram de paralelepípedos escorregadios, não havia paz. No velho bairro havia paz.

E depois de descer ele chegava onde os paralelepípedos acabavam, em uma esquina onde o cheiro do bairro era bem fraco. Lá na esquina estava o bar onde ele tomava diariamente seu café. Quase diariamente, domingo é dia de descanso, não de tomar café fora de casa. No bar ele sentava sempre no primeiro banco, encostado no balcão, perto da porta. Ele gostava de sentar ali para receber os primeiros raios de sol. O bar do Cardoso. Seu Cardoso vinha até ele e pedia ‘o que ia ser nessa manhã companheiro Gomes’. Gomes era o sobrenome dele. Cardoso pedia o que ia ser, mesmo já sabendo o que ele, Gomes, iria querer. E ele respondia sempre cabisbaixo:

– Um pão com presunto e um suco de abacaxi.

Nada mais dizia, a não ser o obrigado no final da refeição. E Cardoso já havia cansado de tentar puxar assunto.

Todos no bar se perguntavam quem realmente era ele, de onde ele viera, o que aconteceu com ele para parecer tão triste, o que ele fazia da vida, onde ele trabalhava. Todos queriam saber e todos já haviam cansado de perguntar. Todos no bar simplesmente sabiam que diariamente. Menos no domingo. Ele apareceria ali na hora certa e pediria a mesma coisa e comeria e diria obrigado e iria embora.

E era assim, diariamente. Quase diariamente.

Ele desceu a rua de paralelepípedos.

Já sabia de cor onde pisar, há anos fazia sempre o mesmo trajeto de sua casa até a repartição onde trabalhava. Descia até o bar do Cardoso, sentava sempre no mesmo lugar para pegar os raios de sol da manhã e sempre pedia:

– Um pão com presunto e um suco de abacaxi.

Mas.
Naquela terça-feira ele sentou em seu lugar e pediu.

– Um pão com presunto e um suco de abacaxi.

E olhou para fora, como sempre, para ver o sol.

Alguém não habitual entrou no bar. Todos se conheciam ali, era um bairro que quase nunca alguém de fora vinha passear, não tinha o que fazer ali no bairro. E o estranho entrou no bar do Cardoso e sentou. O estranho sentou ao lado dele, do Gomes.

Cardoso veio com seu caminhar devagar, coisa que acontece com a idade, e entregou o pão com presunto e o suco de abacaxi a ele. O estranho olhou para Cardoso e pediu:
– O senhor me vê um pão com queijo e um café com leite, mais café do que leite.

E Cardoso concordou e foi buscar.

E naquele momento aconteceu o que muitos chamam de mágica, outros chamam de destino, alguns chamam de predestinação divina. E poucos chamam de Sonho.

Ele, Gomes, olhou o estranho e reconheceu seus olhos, reconheceu sua postura, reconheceu seus lábios, a cor dos cabelos. Mas ele, Gomes, sabia que aquele não era quem ele pensava, pois aquele quem ele pensava tinha a mesma idade dele, e aquele estranho no balcão era jovem. Ele pensou por um minuto alucinar.

Então Cardoso trouxe o pão, trouxe o café com leite e o estranho entregou a Cardoso uma foto e pediu se reconhecia quem era e disse um nome, primeiro nome, sem sobrenome.
E então Gomes ouviu o nome, estranhou, voltou a comer.

E Cardoso disse que não conhecia e o estranho disse então nome e sobrenome daquele da foto.

E Gomes levantou a cabeça. Involuntariamente. Gomes pediu o que aquele estranho queria com ele. E pela primeira vez em anos os clientes do bar do Cardoso ouviram a voz dele. E o estranho olhou para ele e disse que precisavam conversar. E Gomes concordou, ele conhecia aqueles olhos, aquela postura, aqueles lábios, aquela cor de cabelo. E Gomes e o estranho subiram a rua juntos, até a casa velha na rua de paralelepípedos.

Eles sentaram em um sofá roxo.

– Quem é você? – perguntou Gomes – Eu te conheço, não conheço?

– A mim não – disse o estranho – Mas conhece meu pai.

E Gomes então entendeu tudo.

– Então eu sei quem é você e sei quem é seu pai, e eu quero que vá embora agora! – Gomes levantou, falava alto como não falava há anos.

E o estranho sem saber o que fazer foi direto.

– Ele morreu.

E o semblante corado de Gomes desapareceu, seus joelhos não aguentaram seu corpo e ele caiu sobre o sofá. O estranho continuou:

– Ele me pediu pessoalmente para te trazer uma mensagem.

E Gomes derramou a primeira lágrima.

– Entregue então.

O estranho tirou do bolso um envelope lacrado e entregou. Levantou-se para ir embora. Gomes derramou outra lágrima. O estranho indo na direção da porta. Outra lágrima. O estranho, já não tão estranho para Gomes, gira a maçaneta. Gomes o interrompe pedindo que ele volte ao sofá. O estranho volta.

– Meu querido – dizia Gomes – Você sabe de tudo?

– Sim! – Confirmou o estranho se apresentando – Meu nome é Juan.

– Ele nunca me procurou, mesmo sabendo onde eu tento viver. – Mais duas lágrimas.

– Ele pediu para que você o perdoasse.

– Agora eu sei que tudo realmente acabou, e que ele não vai voltar, mas nem ao menos sei a razão de ele não ter voltado.

– Ele não podia, você não podia.

– Essa desculpa só valia para quando éramos jovens. – Mais lágrimas – Ao menos agora eu sei que tudo acabou.

O estranho, Juan, levantou. Caminhou até a porta, Gomes dessa vez não interrompeu. Gomes abre o envelope, tira o papel e lê. ‘Me perdoe, Eu nunca deixei de te amar. Era impossível quando nos conhecemos, tornou-se mais ainda com o tempo’. Juan olhou para trás, deixou cair uma lágrima, única. E foi embora. Gomes passou o resto do dia, no sofá. Lágrimas...

Eles se encontravam na casa de Rodrigo quase toda manhã. Menos na terça quando a mãe de Marcos o levava para a escola e no domingo, pois ambos acordavam tarde. Marcos batia cedo na porta de Rodrigo e a senhora Gomes atendia sempre dizendo que o menino já estava indo. Eles iam juntos para a escola. Eles se conheciam desde pequenos. Eles desciam juntos a rua de paralelepípedos até um bar que ficava no final do bairro, perto da escola. No bar eles tomavam café, eles gostavam de tomar café juntos. Rodrigo pedia um pão com queijo e presunto e café preto. Marcos pedia um pão com presunto e suco de abacaxi. Eles se conheciam desde pequenos, eles se amavam. E quando o mundo soube desse amor, tudo começou a desabar. Marcos foi mandado para o interior, Rodrigo foi proibido de sair de casa.

E o tempo passou, e agora grandes, ninguém mandava neles. Mas eles já estavam longe um do outro e o mundo continuava a odiá-los. Eles prometeram se amar e um dia se encontrar. E o tempo passou. E a vida cobrou resultados e eles se afastaram cada vez mais. E o tempo passou. E aquela dor continuou. E Rodrigo se afundou dentro de si próprio para fingir viver.

E o mundo matou aquele amor.

...Ele desceu a rua de paralelepípedos.

Sentou no mesmo lugar de sempre para ver os raios de sol. Cardoso veio até ele, mas mudou a pergunta:

– Me responderia algo se eu perguntasse? – A curiosidade de Cardoso foi alimentada pelo estranho acontecimento do dia anterior.

– Claro! – confirmou Gomes.

– Por que sempre o mesmo pedido?

– Porque era o preferido dele, pão com presunto e suco de abacaxi.

E Cardoso não questionou, mesmo sem entender. Virou-se e foi buscar o pedido.

– Cardoso? – Chamou Gomes.

Cardoso olhou para ele.

– Me vê um pão com queijo e presunto e um café preto, bem grande e sem açúcar. – Gomes sorriu, Gomes viveu.

Cardoso não entendeu, mas foi buscar o pedido.

– Cardoso? – Chamou Gomes.

Cardoso olhou para ele.

– Por favor, me chame de Rodrigo.

Gomes sorriu, Gomes viveu.

Fecha os olhos daí que eu os fecharei daqui…

Pra poder receber meu beijo.

Vai que durante este propósito acontece algo…

Como um lapso no tempo, um furo no espaço…

E eu dê meu beijo…

… e você o receba.

Bonsoir!

Demandez-vous, alors, à française?

Quel-est le sujet pour ça?

Et ce n’est pas trop tôt!