sexta-feira, 24 de junho de 2011

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um galo canta perto daqui, o trem passa. todos dormem. queria escrever em cunhas. não precisaria, mas acordarei cedo. como acordar, se nunca dorme? ainda ontem de pijamas, no sofá, enrolado nos cobertores, comia pé-de-moleque e ouvia La bohème. quem sabe? não sinto frio. meu máxilar dói como se os dentes estivessem trincado pelos tremores, isto é, o assombro. a dúvida é uma caixa de remédios vazias. deveria silenciar, mas minha escrita é reacionária. meu muxoxo não é revolucionário. tipo: crítico cítrico. pediria as devidas desculpas, até tentei, mas a mão falhou, as letras despencaram, os dados não rolaram. nem mesmo nos dados viciados se pode confiar. a tecnologia deu o último "não" quando apenas quis saber o porquê. o teu porquê. mas é pra mim que pesam, que as coisas rasgam a alma pelas arestas. que alma? entre o comprimido e o suprimido, o soluçõ e a naúsea: uma retórica que não precisa ser decifrada. coleciono fantasmas para meu sobrado de idéias mal-assombradas. o caco de porcelana alemã no chão é culpa minhã: a mão treme insegura. não falaremos em dossiês ou em resultados. economia. o primeiro sempre esquecido. sinto o gosto de café daquela manhã (há um ano) estalando amargo na língua... como sempre, em silêncio, fui convidado a me retirar. eu te perdi por entre os livros que (juntos) visitamos.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

CASU CONSULTO

… Un destin si funeste,

S’il n’est digne d’Atrée, est digne de Thyeste.

[Para quem souber ler].

Há tanto tempo deixei de fingir que fazia versos ou de tentar entender, de pensar na superfície do papel, dirigindo a tinta, desenhando e deformando os contornos que agora não sei. Na memória resta um borrão que talvez, se imaginar direito, possa ser cópia d’algum quadro de Monet. Minha biblioteca fechada. Minha vida, vazia. Depois do “boa noite” o telefone não toca. Não pode mais. Quantas horas perdidas na espera. Esta é a parada. Personagem coadjuvante que perde a fala. Não espera a deixa. Esta é a minha parada. Deixo o grande relógio de pulso sobre o banco. Que o tempo siga, que os ponteiros não parem enquanto dobro a esquina como quem dobra e esconde um bilhete no bolso esquerdo da calça jeans. Com um lenço descartável retiro a maquiagem enquanto caminho. À mostra aquela ruga (tantas vezes perseguida) pulsante no canto da boca. Olhos, bocas, expressões e tantos tons. Apagando o rosto. Pagando pelos vestígios e pela passagem. Não sei o preço da viagem. A vida como álbum de fotografias. O dedo anelar da mão esquerda traz a unha roída sangrando. Os erros como num conta-gotas. Dei-te mais que um poema. Éris, sobre a cena, marca um x no peito como quem conta, como quem jura. E procura. E insiste. Da primeira vez tinha apenas dezesseis anos, os bolsos cheios, tantos papéis turvos de idéias mal-sabidamente roubadas. (Quando escrevi meu primeiro romance perdido – mais de cem personagens, sempre principais). Agora, sem tempo, defronto-me com o branco vazio. Escondi os mapas dentro de uma pequena novela que não quero ler. Na dicção certa de uma novela pode, no estender da página, fazer-se um romance. Insisto n’outra página, aquela copiada em surdina de um diário, em que quinze linhas, dois pontos, três vírgulas e nenhuma reticência poderiam, não sei, insistir mais ainda. Ainda erro na gramática, mas sem história, não pinto os retratos. O rosto barbado com dois olhos – copos vazios – e sem cartas na manga. O que poderia trazer o correio? Há a sede. Os passantes como aqueles (aqui) que observam sem ver. Em uma mão o comprimento da vida, n’uma demão, o prolongamento do ar, no ar, do reflexo malicioso. Entre os lençóis o nome trocado, o companheiro errado. Diante do passo: uma moeda perdida, lançada (como dado) para o bueiro. De quê importa o resultado? O trilho do trem. O carvão se agita entre os dedos, a orelha sem o diamante. Talvez última cena, como estribilho, suspiro por detrás da câmera que ninguém no cinema viu ou ouviu. Acredite, faz frio, perto do grau zero. Desço as escadas, os porões. Subo as escadas, os sótãos. O mesmo cheiro ocre de grito de vendedor ambulante, o mesmo engasgo de quando a agulha de costura alça o dedo, o retorno do olhar desviado. Talvez tenha perdido o tempo como quem corre e chegando antes do trem crê que o perdeu. (Tinha de descer sempre na Sé). A mente é um lugar perigoso para se andar sozinho. (som metálico de um coração pulsante). Onde desci agora? Num outro ponto do mapa, uma garota não sabia dos perigos da Jonhsons&Jonhsons: roubaram-lhe as lágrimas. No trigésimo andar do mesmo edifício um psicólogo selava cartas. Três ruas adiante, nas quais certamente não passei, uma garota morena com uma saia rodada preta com bolinhas brancas brincava com um iô-iô enquanto esperava se motoqueiro rebelde. Ao som Dvörak, um belo rapaz procurava o corpo de outro no escuro do desejo. Na esquina um rapaz loiro, sem preço, oferecia-se fácil e lânguido “para todos os fins” de todos os transeuntes; mesmo local em que três anos antes, furtivo e apressado um jovem advogado esbarrou numa moça que trazia o ombro tatuado onde se lia Te moneo (neste exato momento um historiador, em Paris, derramava café em suas anotações). Nem ele, nem ela pediram desculpas (o historiador teve que começar de novo). Cinco anos mais tarde, uma sereia balzaquiana entraria em uma livraria e se recusaria a comprar as notas embebidas em Paris (quase como um trem da meia-noite). Obra que, certamente, também não li, mas decerto sabemos sua importância, dado que é o resgate da discussão de dois biólogos acerca das vespas da família Evaniidae. Em Detroit, uma jovem moça reconstruía o Robocop enquanto seu designer-assistente celebrava a newface. Entre ilhas, um entregador que chegava sempre atrasado, um que nunca saia e um que nunca voltava se revezavam em dúvidas sempre mortais. Na pequena Londres vitoriana, sem violinos, um espectro secreto, tão perto, talvez pudesse esconder meus segredos num de seus lenços de seda. No trem que agora passava pelos trilhos, uma moça com grandes óculos escuros lia placidamente a VogueNY, três vagões atrás, classe econômica, um menino de três anos comia batata frita com sorvete. Destino: Braxília. Mas o quê ainda fazer com as fotografias que restam ainda na gaveta? Como encaixá-las, como perdê-las? Sempre perdido, nunca perco as coisas, costumo ser inquirido com um pouco mais de rigor e compelido a doar meus pertences (isto se compondo como eufemismo para assalto). Se não tivesse dobrado a primeira esquina, talvez tivesse chegado ao meu destino, na volta passado por uma farmácia, comprado minhas novas pílulas, passando pelo busto de Augustus e de Charles Magno sem prestar atenção na sua pátina verde-fosforescente. Acho que ficarei doente, portanto, não se danos. Sinto a garganta arranhando, como gatos brigando por uma espinha de peixe. Há o medo das curvas perigosas – sou eu que não encaro enxaqueca como uma doença,mas como alerta. É delirium tremens de um viciado em palavras - em abstinência. As verdades suspensas e seu solidário destino solitário: O impossível carinho (Manuel Bandeira). Releio o bilhete enviado: “Fecha seus olhos daí que os fecharei daqui… pra poder receber meu beijo. Vai que durante este propósito acontece algo. Como um lapso no tempo, um furo no espaço… e eu dê meu beijo e você o receba…” – como a resposta que não houve e aquela que poderia ter havido (“Que sonho seria poder te abraçar agora e sutilmente entre meus dedos passar os macios fios de teus cabelos. E velando teu sono, poder arriscar um leve e suave beijo em teu olho esquerdo ou num rápido flashback provar do teu cheiro em meus lábios após tocá-los em sua testa”). Difícil parar os pensamentos. Quanto tempo tenho perdido tentando planejar o futuro? É tão fácil assim esquecer alguém ou é este eu que se lembra demais? Diálogo entre paredes: O que você faz. Nada. Respiro. Só pra passar o tempo. Zanzando pra lá e pra cá. Baratatonteando. Tomando café. Sem propósito. Existindo. Esqueço o mapa, as cidades, as voltas. O teto do mundo que não pude tocar, ou toquei sem saber, sem sentir. Poderia existir alguma certeza na inconsistência da inconsciência. Ao invés de sentar no banco, subo nele. Baco e a única tragédia. Nó no pescoço. Hora do último passo. Não há corpo para a devora. O que eles teriam em comum. Aquela moeda atirada ao bueiro. Segredou num quase epílogo: “quanto maior o livro,menos chance ele tem de ser lido”. Uma carta não retirada. No remetente: Tirésias. No silêncio, a recusa de uma lápide. A última palavra não dada.