terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Uma ampulheta sem areia

Talvez quando é necessário desistir seja preciso perder todas as palavras. E quando não se tem sequer palavras para perder. Quando o que resta é apenas a beira e a eira. Esta dor consumida entre dois goles d’água e um comprimido. Onde está este meu pequeno erro… a falha no disfarce… Esse barco que passa por mim. E esta apólice de seguro que há tanto tempo abandonei. Não sei o que deixo para trás, não sei pelos “andarei”. Carrego algumas páginas brancas para plantar, destas que não doem e nem deixam escapar nada. Em nenhum lugar. O que ainda existe em mim? A mala aberta no chão, os livros espalhados pelos cômodos, a tristeza escorrendo pelas paredes (e não dói e nem diz). Madame Bovary diz do amor que nunca encontrou, mas que insiste e existe em alguma página. Sem magia. O mundo é tão ínfimo que visualizo através do espelho, como um sonhador olhando o mar através da janela de Tomar. Eu sou a mim mesmo devolvido, digerido e sem voz. O que vibra aqui é fibra lânguida de um corpo que se esvazia. O sentido disto que não dizes. O que repasso são apenas as regras do jogo. Uma vida feita pentagrama na qual pudesses escrever as notas, sem graves ou agudos. Sem canto. Debaixo d’água eu ainda precisava respirar. Minha biblioteca tem obras raras, eu leio mais que supões, mas nada sei dizer. É como esta onda que volte-e-meia vem-e-vai.E tinha que respirar? Eu apenas precisava respirar. Construí um barquinho de papel. O mundo é um mar e eu não sei nadar. Enquanto tu aprendias a voar n’água como borboleta azul. Minhas borboletas dobravam as pernas, sentido o cru da vida doendo na torção dos ossos, deslocando os joelhos, curvando os pés, esticando os músculos, fazendo uma vida elástica na sua anamorfose que se torna impossível ver o que vejo no espelho, nem mesmo uma fotografia captura o que eu fui ou o que poderia ser. Entre o preto e branco e as muitas cores, me perco numa escala de branco sobre branco. Ar. O ar que eu precisava respirar. Meu joelho esquerdo dói. Eu preciso repassar as possibilidades. Eu poderia faltar no encontro com este amanhã. Eu não sei as escolhas que fim, mas que é o apenas o vento ventando e cumprindo no vento seu caminho de levar as folhas e de dizer e insistir para mim “já não pode mais fingir”. Talvez eu viva nesta minha almofada carmim, olhando com o desdém o espetáculo diante da janela. Löblichgasse 14, 1090 Wien, Áustria. Há vagas. Há vagas. Tu dedilhas ao piano a canção que nem sabes como eu nem sei quem és tu e como te invento aqui. Não se pode cobrar as lágrimas, as flor dos anos, os olhos insanos,o banco que se colocou à espera. Qual verso poderia te citar? O que ainda poderia te dizer que não disse? Chuto os livros espalhados por este projeto que é de um eu torto que nem sabe dizer eu e diz tu, tu, tu, tu... como contraponto, como contradança para descobrir o vazio que deixa na própria pegada, como se fosse a pegada e se apega ao passado do pé não vendo que o pé que sustenta o corpo é aquilo que dói por conta do não apagar da lembrança deixada. o que você me disse, eu ouvi. Misturo os remédios na palma da mão. Cifro meu pequeno verso: vida mais insignificante que um dodecassílabo. Eu sofro de silêncios e distâncias mal-resolvidas. Talvez devesse apagar tudo. Todo o registro possível. Você me buscaria. Talvez seja apenas dezembro fazendo o que sabe fazer melhor. Talvez seja as cicatrizes que doem como ideia errada. Na estrada, perigosamente, baixo os olhos como quem desliga os faróis e solta o freio de mão. O tremor essencial ali, na ponta dos dedos, arranhando minha falta de política e meu excesso de polidez que você não entenderia nunca. Eu desconfio de Ezra Pound. Sou incapaz de me pôr a prova. Meus pontos cardeais sem nenhum catolicismo. All your dreams are just a kiss away. Sonhos? eu nem sonho. e existo. e insisto. e nem sei o porquê. O que atravessa é tão menor e é só que tenho. A decisão, entretanto, não é uma exclusividade do poder jurisdicional. E que isto significa agora? daqui, destas minha venezianas fechadas, com os cães ladrando, com tudo que parece ganho perdido, com o sem valor dos papéis. o que pesa nesta assinatura e neste nome que não digo. E se eu pudesse tocar mais que o quadro roubado? E se visse mais que cena cortada? Se através das fechaduras não pudesse ver porque a porta já esta aberta? Quanto vale uma dor comprada? Quanto vale um sono pesado? Quanto pesa o corpo quanto nada mais deixa de ser química e na química se resolve. Minha hóstia é uma crença de que o alprazolam adormece tudo e que o prozac segura o riso tímido apegado a cara. dando no meu branco inflexões de cores de uma memória que não posso ter e de uma história que sequer é minha. e eu escrevo simplesmente para perder no meio das palavras aquilo que dói e e escapa aos meus dedos por mais rápido que eles insistam no teclado. e a ortografia falha, talvez mais que as palavras, mas é quando as palavras falham que importa. quando o grito não saí, quando o corpo não cai. estou armado, copo d'água na mão, a boca aberta, na língua três comprimidos para comprimir esta voz que não se engole e não saí que se agarra nas cordas vocais que queriam cantar. è preciso beber, Shakespeare. Talvez amanhã, ou no ano que vem, Mrs. Dalloawy possa ir ela mesma comprar as flores para algum funeral. Na lápide, a insignia do arminho, sem alma, sem corpo, sem pó, sem pegada, o vazio do nome como o vazio do ser. Algo que foi sem ter sido.