quarta-feira, 18 de novembro de 2009

recorte

há uma linda mulher sem seus saltos lacerantes, sem os cílios longos e negros, sem um bom corte ou um bom penteado. há a mulher com seus jeans e seu batom tímido. o perfume diário, quase que imperceptível. amadeirado. os cabelos armados por um coque travado por um lápis ali esquecido. decidiu não ter mais esperanças na superfície esguia dos dedos finos de unhas roídas. claramente sem nenhum esmalte. tentativa de não se esquecer aos desejos, mas sub-traí-los. o corpo quente queima sob o sol. camiseta branca. sem estampa. sem manchas. talvez nova, mas não de todo. o sol acentua-lhe as rugas ao maquiar a pele. gostaria, por vezes, algumas vezes, nos saltos, atravessar o salão no horizonte dos olhares. renuncia. ou antes disso, fora do tempo, atravessa o salão com outro rosto, feito origami. feito trama de papel. cheia de si quanto merteuil. cheia de medos quanto bovary. mas cheia de modos neste seu aspecto único. intransitivo, direto. todas as noites quando se esquece nua na banheira e no frio escuro dos violinos de seu gramofone, atravessa as manchas de tinta dos dedos, as linhas das palma da mão se apagam, os papéis esparsos, os pés mal-cuidados, cerrando os dentes vê apenas isso. não quer os efeitos para além da dor nas costas, a angústia que lhe infla os pulmões de ais silenciosos em agonia, o calo no dedo mínimo do pé esquerdo. o efeito é, ao máximo, a água quente a torcer-lhe a sintaxe das idéias, ao mínimo, o vento frio do ventilador que lhe arrepia a pele depois do banho. sem nenhuma história. sem nenhuma grande história. o mote de vida empilhado entre os milhões de livros de sua mesa de trabalho. as outras dores ocultas nas páginas rasgadas que jazem no lixo. o manuscrito não escapa impossível aos olhos que renegam todas as lentes. espera o correio. postal. mas o carteiro não vem às 4 horas da manhã, vem? não, creio que mesmo que venha, ou possa, ou poderia vir, aqui não virá. aqui não. assim, resta nua, sem os jeans, cabelos úmidos na temperatura abafada, ouvidos surdos pelo ventilador, no ermo de uma cama de solteiro, de lençóis amarfanhados, abandonada à luz indireta e fria entre o cigarro e o café.

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