domingo, 10 de janeiro de 2010

À procura [parte I]

de um certo exílio
com ecos de Antero de Quental
para Andréa de Carvalho
como convite a aventura
(... uma vez que o era uma vez não cabe mais...)

QUATRO horas da manhã, um caminho errado, uma decisão, um gole de vinho a mais. Tudo o que dói sempre dói mais, machuca mais, no silêncio da madrugada. Algumas coisas não são escolhas deliberadas, nem mesmo posições tomadas que devem ser sustentadas até o final da cena. A noite estava bonita, uma enorme lua, estrelas em profusão como se o céu tivesse se preparado para alguma coisa especial. Era uma noite sensual, qualquer um poderia perceber isso, mesmo que da rua não pudesse vislumbrar o vulto esguio no terraço do prédio. Havia notas doloridas de uma música feita caminho, como algum dia, sozinha assim no terraço, o vulto armado apenas de um cálice de bom merlot, a pele branca exposta ao vento, a fina camisola de seda, um desejo impossível palpitando no peito. Ela sabia o que deveria fazer, mas não poderia, não mesmo, a não ser nesta noite, deste décimo terceiro andar. As coisas poderiam ser tantas, e boas, ela sabia, ela mesmo dissera isso ao telefone a uma amiga durante a tarde. Há momentos em que não se pode fazer muita coisa, era isso que ela sabia, dali, de sua vista privilegiada, observando a mancha negra que o mar fazia no horizonte. Mas não havia mais nada, nenhuma certeza a que se agarrar, nenhum sonho restava ainda intacto. A mão branca de dedos finos e unhas roídas tocou o rosto. Havia marcas ali que não eram marcas do tempo, mas marcas de um tempo que ela não poderia vencer, marcas silenciosas de desespero. Talvez o que procurasse não existisse, talvez estivesse junto com as estrelas. O vinho amargava ainda mais o gosto de solidão da noite. Ela se habituara a esta dor, fazia-a talvez se sentir um pouco mais viva, um pouco mais… mas não era isso que ela queria para si. Não entendia como ser viva assim. Viver assim, não era viver. Não parecia viver. Ela mais do que ninguém entendia que uma noite sozinha significava o mesmo que uma taça de vinho vazia, significava que outra, taça ou noite, se seguiria, e de novo, e de novo, e novamente. Era preciso encontrar algo, nem mesmo que… Num gole rápido, seguido de um gemido adocicado, esvaziou a taça, bebeu assim o vinho raro que ganhara de presente. Bebeu como se fosse simples água de torneira, sem prazer. Para tomar em uma ocasião especial, disse-lhe o pai. Ocasião que não chegava e pelo visto não chegaria nunca. Olhou o cálice, um Waterford, presente de vovó para quem tomar um vinho refinado exigia um cristal à altura. Tão frágil, tão belo, tão único. No parapeito, olhou o chão, tão solitária e ímpar quanto o velho cristal. Sorriu mostrando os dentes perfeitos, marcados ainda pelo vinho. Ela sentiria falta do cristal, mas decidiu experimentar. Quanto equivaleria, em dor, treze andares? Quanto? Assim, simplesmente, soltou o cristal. A taça rodopiou e foi assumindo rapidamente sua invisibilidade. A noite não deixava perceber o movimento, embora ela jurasse perceber a taça em queda pelo vislumbre de um reflexo, não conseguiu ouvir um som, nada. Obviamente o cristal se partira em milhões de fragmentos, impossível permanecer intacto depois de um vôo como este, mas apesar da certeza, a seda da camisola reluzia tímida e criminosa, o azul escuro se confundindo com o céu da madrugada, era necessária alguma certeza, dizia para si, um soluço agudo cortou a noite abafada e quente, voltou-se ao parapeito, inclinou-se muito, sentido o vento no rosto, treze andares, a sensação do vento fazia a pele arder num fogo gostoso, mas havia necessidade de conferir uma última verdade universal, uma lei, precisava ir, e rápido, lá embaixo ver como ficou sua taça. O vento era… muito… convidativo…

Um comentário:

  1. Solitário. Em dados momentos todos queremos descer e ver nossa taça, é convidativo!
    É convidativo tentar entender os pedacinhos fraguimentados espalhados no chão.

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