quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Inferno

O fundo falso, o alçapão, a cova. São sempre mais perfeitos. A tristeza é saber que o inferno não mata. Que os anjos caídos, anjos da noite de face oculta são sempre mais belos, como as estrelas. Mas, não sendo espaço celeste, nem místico, nem mágico, o inferno é vivo. É retrato. Espelho. Lugar em que suspenso, no escuro, sozinho, tenta-se sobreviver. Escrever é o vislumbre sedutor da morte, que nunca vem. Pode ser certa, mas sempre demora tanto. Não há luzes, nem caminho. As coisas explodem e murcham, as cartas sempre retornam, os sons apenas rasgam a pele em dor, sem troppo. Assim, sozinho, feito sombra, no longe, tão perto das luzes, das estrelas, no frio, na calmaria do absoluto, diante das formas simétricas, resta o condenado. Sem voz, nem mesmo pra gritar.

curvas

[23h24 de 08/12/09]
[passando por Itajaí]

I
a buzina forte, três bancos a frente, assim, na curva do olho, no efeito desejo,vislumbre de tecido lateral. a marca morena do abdômen quando levantou o braço. apolo não seria assim, não teria este samba assim. coisa que decerto tu nem ouves. um abraço forte e um gole de café faria bem. estando assim, bem louco pra beijar, mas o escuro, às costas a paisagem obliterada por um caminhão. o escuro assombra. é pesadelo no limite geográfico do abandono.

II
teu corpo se faz delicioso. se faço este poema é para te manter aqui, imagem latejante. a intermitência da distancia separa este corpo do teu. outro corpo negado. tua tatuagem te dá o espírito único nos teus olhos verdes vermelhos de sono. diz assim, devagar, tocando de leve os lábios no ouvido, que está louco, perturbado, seja como for, querendo ocupar este lugar de arrepios vago. a poltrona reclina, o gesto declina. diante de mim, se inclina e insinua isto, ambos sabemos impossível de palavra. não há destino imediato. não há final possível. Apenas o querer latente deste rosto indivisavel na penumbra.

III
as meias abafam os passos, um arrepio persegue as unhas, seguindo a curva num salto estrelado. dois goles d’água afogam o beijo que se quer. não há nada mais forte à mão, nenhum único desejo de retornar, assim nestes passos de bailarino bêbado, fazendo mágica erguendo a própria cartografia na página. esta página onde todos se empurram devagar, como se tivesse frente e verso, mas tudo, no branco vazio de barco, o afã baroc disléxico e que perde a luva nestas esquinas rápidas.

IV
a rodovia rodopia diante dos olhos fechados. os corpos-corpos cadáveres continuam inertes. as rodas fecham as portas do coração entupindo veias e fechadura com angústia e vazio de ecos. eu insisto em não saber cantar ou sorrir. tudo algumas vezes dá na mesma. ouço cássia eller cantando em francês. tenho tantas opções. nem sequer consegui tocar no meu chocolate suíço. as lembranças de um destino possível doem. eu não posso mais querer de. não posso mais tremer as palavras nos poemas que eu devo. devo mais poemas que dinheiro. eu faço versos como quem paga dívidas de vida, abrindo pulsos, sem ser dramático, contando uma história chaveada do amanhã.

V
as luzes da cidade acesas me ativam uma música que não quero trazer à cena. há no meu quadro de alice, dentro deste ônibus, um menino mau. que corre e grita. esperneia sem saber sonhar. sentado quieto, mantem a respiração irrequieta. devagar. o pulso domado sabe tantas verdades. já perdi, quase, este menino três vezes na curva da minha mão, com os dedos que insistem em apagar a linha. ele tem medo do pileque, do vômito, das máquinas enlouquecidas. gosta das garotinhas como outras garotinhas.

VI
abre o mundo sempre devagar. como pedir ao garoto, alice, um beijo, adivinha, para outro garoto. a dúvida persegue, a minha moça, nas ruas de londres, nas cartas de uma virginia. não me leve ao mundo. há um gosto de castanhola no sonho. um gosto de amor latino e ladino como os cães latindo que eu apenas vejo e não ouço. as violas, magias se fazem. meu deus. meu cadillac é isto aqui. me dá um ramalhete de flores murchas, uma luva e um anel de brilhantes. não, não é o que eu quero. o calor faz mal e pede sorte nesta noite sem estrelas e sedes candentes. a cadência desta vida é um trocado chacoalhando de leve na bolsa, uma moeda rolando pelo corredor, debaixo dos bancos.

VII
uma outra cidade. um outro quilômetro. o corpo inteiro te queria sem saber divisar teu rosto. eu tenho mil remédios, como os desejos, clássicos e las(en)cerados, o amargo na boca não é tristeza. é uma aspirina mastigada. que rola no digestivo abaixo. fazendo a mente manter sua garantia com algum. o sol poderá vir. mas não quero dis-curtir astrologia. Cansei de desejos. eu queria apenas que um soluço preso na garganta não se libertasse, que não houvesse necessidade do poema. o poema faz vezes desta banalidade, de ser pra você que me faz sorrir, mas eu só faço chorar. faço vezes de moderno, o tempo é rombo, não curva, as abóbodas são diante dos meus olhos ápodas não sabem como tomar o trem depois disso aqui. o ônibuso me leva. a alma fica presa em algum lugar. um cão mijando na esquina. engulo, duro, um sorriso. o teu. eu sei. eu deveria te seguir, mas tu não quis. tu não desenhou meu mapa. la nuit de mon amour, diz elis. mas sem ultimas estrelas desacredito essa pele infante, sem cor, sem sabor ao espelho. eu vejo as sombras que se lançam e se laçam numa felicidade ignorante de si. eu tomo goles rasantes de água, rente ao asfalto quente. é isso. a cabeça diante da guilhotina do desejo impossível aceita o vazio de si, desenha a curva, euclidiana, do seu ultimo movimento. ronde dans La terre. ronde en l’air. A ronda que a roda não sabe. meu último passo de ballet. pointé. point.

Egmont

overture in F minor Op. 84

Rosas. Sequer gosto de rosas. Flor que despetala na primeira lágrima. É preciso tecer com os raios da manhã este bordado de pontos cruzados. Pontas de cruzadas de olhares detestados. O paladar salgado de quem acorda de um pesadelo ameaça sempre o dia. É preciso mais do que um teste feito texto que se acorda nos acordes que são acordos entre pausas. Espreguiça lentamente abrindo as mãos, tocando meu cabelo. Descobri o mote feito mulher. A poesia feita em prosa aberta para além do que começa com o era uma vez. E foi assim que pus num envelope virtual, e por isso virtuoso, um pedaço da minha pele marcada. Um pedaço deste couro que se faz cinto e sentido em mim. De mim. Por isso desenho devagar as arestas, como quem ensaia a dança, como que aprendendo a dar os laços no cetim, na seda, nas vírgulas que impelem os pontos. A sutura que não se abre. A voz que se faz corte. Não preciso mais correr. Meu tempo marcado está no esperar até junho. Talvez em fevereiro o impossível aconteça. Desisti de milagres. A minha catedral é feito estético da pura forma. A estesia deixo como dedo cegando o olho. Acho que a falta não é sentida bem como a fala não é ouvida. Eu sonhei um sonho tão mágico. Acordei sem as pérolas, sem asas, com um cheiro ocre no ar. Meus livros se devoram enquanto devoram a mim. O quadrado branco de um naco de carne é o que resta fora da marcha. Forjo um título como quem força a fechadura. Forço um não mais, um não ainda, para fazer epígrafe, lápide, moldura. Para dizer do salto XIV e da flor de lis tatuada em cada ombro. O coral de vovó foi roubado, não poderia dizer que está guardado. Não o consigo recuperar de maneira alguma. Nunca. Seria bom que voltasse para mim. Mas tanta coisa não volta. Tanta coisa é apenas lá distante estrela reluzente e insistente como o zumbido frenético de uma tuba, de uma tumba, do mover-se do cadáver. Porém, de-testado, o corpo desfalece, como flor, flor ferida aberta na raiz dos cabelos, emaranhando as tranças, as lembranças, as heranças, mas sobretudo flor que não se faz flor, mas flor que acontece flor, sem ter cor, perfume, som. Longe de ser rosa, apenas roda e aparece às vezes condicionando o vôo das borboletas.

domingo, 27 de dezembro de 2009

à procura

hoje comecei um romance, escrito como carta em aberto. como página para um leitor apenas. para alguém que também sabe que faz e que desfaz na escritura este eu desmanchado. como todos os outros restará apenas o vestígio. como presente. presente perplexo e contínuo em que não construo nada. em que desisto do jogo. em que eu não posso. tu ficas aí na tua janela fumando placidamente seu cachimbo. nem mesmo há tu. este nós feitos de descompasso e desencontro. eu queria poder responder a uma pergunta apenas, que tu não fazes. não podes fazer. não realiza o encontro. não podes. penso em abandonar o museu caso eu consiga fechar o diário. os jornais capturam as páginas em preto e branco. o dedo indicador dói. insignificância e ausência. eu queria poder escrever um pouco mais, mas não é possível. é preciso deixar a latência, o roxo da pele, a dor no fundo da retina descansar. quem sabe assim seja possível o fim.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

não acredita nesta esfinge
a placa diz vire à direita
o abismo feito serpente engole
o vazio verde do deserto
as formas do que esqueci
pode ser
assim, isso que preciso
manchando a moldura dos quadros
o último retrato não salva
não traz solução
não traz resolução
mas há muita coisa
a se esconder meu sorriso
o largo das mesas
compras, compras, compras
não compras
a mão que te estende
sem luvas
a luva
a certeza
o anel que rola escada abaixo
imagem que cai
como o outono
esquece
anda devagar
deixa a chuva molhar
o macio da tristeza
para ficar nisto
e nisto apenas

exílio [4]

erro a citação como está escrito.por amor à ti sou entregue à morte todo dia. reputado como ovelha ao matadouro. mas estou cá, bem certo, que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem o presente, nem mesmo o futuro diz de alguma coisa. quem é que me condena? tira o castiçal do lugar, acende o fogo. eu estou leiloando a estrela da manhã. irritadiço. perdendo os fios, as linhas, a razão. tudo para ocupar espaço. fazendo das palavras pegadas as quais me apego e insisto em ver um vulto perscrutador na janela. sombras que se movem. welcome to my junggle.usa os saltos, acena, arruma os cachos, garota. é preciso fazer sorrir. olha bem esta 3x4. fixa este rosto. é este corpo que quero nos obituários amanhã de manhã. quero tudo limpo, asséptico. sem rancores, muito profissional. sem vínculo e sem prazer. sem últimas palavras. bom, o tempo corre. vamos?
[22 de dezembro]

exílio [3]

me diz o que tu queres de mim, me diz o que esperar de mim. estou aqui, nu, passando frios. as estações não se alternam neste inferno escuro. o inferno é assim, roendo os ossos, em abismo. sozinho, no escuro, passos da loucura. todos fazemos uma escolha lenta. cueca branca ou preta? assim decido meu jogo de xadrez. me comporto até o adágio final. sei que este romance não terá um final feliz ou trágico. c'est toi? c'est moi? não há sequer um romance ligado no aleatório. minhas janelas não abrem, não tenho terraços. há apenas a banheira, assim, devagar se enchendo, devagar esvaziando. o corpo murchando no excesso. abandonando o próprio do abandono. queria um cigarro apenas. uma baforada mística para ler na fumaça aquilo que as cartas não dizem. não sei dizer se me enviou notícias. fugi do torreão do castelo do qual me fazia dragão. um contínuo suspiro se pendura e como pêndulo agita as dores. around the world, corres e voltas o rosto pra mim, assim, como quem sabe o que disse e roga as pragas. não consigo mais predizer o futuro. All I ask of you. não sei cantar, não me dê notas assim. eu apenas ouço. estas notas são falsas, não valem nada.sempre. não sei o porquê de falar com este reflexo estranho no fundo mágico da bacia de estanho. prata, bem pudera. será que minha vela já queimou até o fim? hoje ainda é o começo da terça-feira. algumas flores não são nem felizes nem tristes, apenas solitárias. não precisam de nada, nem mesmo d'água para serem flor, sem serem abertas ou belas ou perfumadas. não fazem botão. nem se despetalam devagar. nem se dobram às janelas. mas uma flor feita em gran finale. assim molto vivace, andantino con grazia, meno presto. maquiando-se de olhos fechados, na própria dissonância cantabile fazendo muxoxo e pouco caso. rasga a fotografia e o fino dos textos! oculta o beijo... esta história não requer uma princesa. há um certo sorriso feito allegro, mas non tanto, ma non troppo, ma non molto. largo, sangrando o sangue vienense no mais leve do dia. procura o toreador, aquele que não tem touro, mas nem sabe que se já perdeu, se já morreu. manda-lhe vir. vá pensiero. tudo isto se desenha num scherzo noturno, com as estrelas do anoitecer na montanha. eu espero soar a valsa para este vazio, para este brilho cigano. it's my way. abro todos os botões da camisa, estou nu, peito limpo, esperando o franco atirador.
[22 de dezembro]

exílio [2]

cometi um crime contra mim. um crime contra isso que acredito. os ruídos me atropelam e doem. doem na superfície de mim. meus ouvidos sangram as tintas da fúria. não agüento mais. não os posso agüentar. no entanto, renunciei aos braços possíveis que me eram oferecidos. temo. simplesmente o medo sobrevém como as patas dos cavalos, como isso que não suporta menos de mim que a sombra. simplesmente meu buraco está armado. queria falar contigo, mas nas escolhas erradas que fiz, na maneira com que derrubei as taças da mesa e esqueci de jogar a moeda no poço dos desejos, ludibriando o gênio. me fiz. agora resto aqui, com estas flores que me matam, me esvaindo no fundo dos quartos para o fino dos textos, limpando o eu destes mosaicos. não queria ter vindo, mas também não poderia ter ficado. fico assim, quieto, portas cerradas, suando, escaldando os quebra-cabeças abandonados de peças faltantes. não suporto essas vozes. o crime que cometo é me obrigar a viver assim, num eterno como se, mas que não. ao menos posso fazer minha música engolir esse seu ruído. engolir teu corpo insignificante. o espectro que queria, mandei notícias, mas não o encontrarei, por culpa minha. bem minha. eis o que escolhi talvez, não quero mais nada pra agora. não preciso saber as horas, não gosto de medir o tempo, não sei, simplesmente não consigo, manter a lógica das superposições. não peço graça. peço, tu o sabes. me aninha apenas num sonho confortável e possível, no fundo dos teus olhos. divide comigo o quente pecado dos (teus) lençóis, mas não. tu foges, imagino. os raios e tempestades que pairam como meus fantasmas. e eu que nem suporto as rosas vermelhas. por favor, me beija, me faz parar de pensar!
[21 de dezembro]

exílio [1]

à maneira com que brincas e danças com a objetiva nas mãos, eu finjo dançar diante dos teus olhos feito palavra fugidia. não queria te perder, mas não sei (também) se queria te encontrar. devo minha alma aos demônios. mais que a alma, o corpo. com parcimônia embebedo as palavras e troco as vírgulas por pontos finais. não sei se devo acreditar neste pensamento que dizes ter. custa me crer que expor o filme assim, tão rápido, tenha uma boa impressão. ora, sabemos, ora queremos. este reflexo involuntário feito luz. este assovio lento. este sorriso perverso do depois, do nus na cama à espera do sono. que sempre chegará primeiro ao outro. sem direitas e sem diretas: como escrever tua fotografia, sendo que que estavas atrás a máquina estas tu e eu apenas procurava um objetivo neste ponto que te supunhas sorrindo para o meu sorriso tímido, penitente, resistente as tuas lentes e teus filtros.a música de fundo era o puro silêncio. impressiona a latência de alguma coisa que se derrama sem saber o que é ou como cai. como cometas, estrelas cadentes, a candência de teus olhos, a cadência dos meus passos sem caminho diante do incerto do futuro.moto perpétuo para violino. se me arrumo em exílio é para me testar diante do vazio louco e ensurdecedor do nada. humanamente, tão humano que se esquece de ser humano diante da lua cheia e do aberto do céu estrelado, desenhando novas constelações. amanhã eu poderei te encontrar, ou não. cavalgando esses platôs do sem limite onde apenas o vento acompanha, aquilo que aqui já foi campanha. guerra. a campanhia não soará, aqui não existem príncipes, mas até existem os cavalos brancos. a companhia para o chá não virá. o fantasma da minha ópera foi expurgado de sua maldição, capturado n'algum campanário, sem setas, sem forças, ele não queria lutar. não tenho fome, quero café apenas. o gosto de terra do ar azeda os lábios, por enquanto (...fale devagar meu nome...) chás e flores se abrem como travessura diante dos teus olhos. a mente aberta num giro panorâmico abre o abraço. não podes ter a luz para a imagem que eu sou do que sou, mas aqui apenas os sinos góticos soando como almas implorando mais dor. mais dor. rompendo os nervos eletrônicos de uma nova fantasia. quero apenas o vislumbre de uma supernova no céu e o corredor amplo liberado para que meus gritos desçam a escadaria e ericem teus pêlos com o segredo do íntimo do teu corpo.
[20 de dezembro]

sábado, 19 de dezembro de 2009

[6] Chambre des Elysées

geme alto e em francês. o corpo se abandona. o odor do champagne, a pele nua. os olhos estrangeiros. um encontro rápido como deslize. sem crimes. na volta o entorno. sem gelo, please. os acentos se confundem com o preço. o corpo se faz barco e abriga entre as coxas aquele outro, de barbas feitas, se dando ao preço da fuga como preço da noite. o meio da noite é o que se paga, não o não-centro de si. beijo forte, tirando sangue das gengivas. abre a boca, toma. um soco para perder cinco dentes. assim, como quem pede para apanhar. 5% a mais na cota. as paredes não deixam o som vazar. você sabe ou consegue encontrar um coração? no mínimo batimento? pague um pouco a mais. me traz um copo d'água, a tinta quase que acaba. ali, no quarto, entre as cortinas, não há mais o retrato, apenas o espelho de moldura barata refletindo as gotas de sangue sobre o lençol de seda. branco. lívido o corpo dorme.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

D’isto que me escreves

um pouco de fôlego para aplacar o aR

Eu sei de teu rosto moreno na ausência, das coisas que me dizia, mas me sei louco por desejar algo que não há possibilidade. Isso não é nem mesmo possível depois. Hoje eu sinto uma dorzinha tão verdadeira. Estou cansado das possibilidades sonhadas, sequer sei sonhar direito. Tentei escrever um roteiro, mas as tristezas se acumulam nos frisos e entre as páginas dos livros. Tentei fazer alguma música ou uma gracinha, mas nem mesmo as rosas são capazes de durar tanto tempo. Eu soube apenas os bilhetes esparsos que me enviavas, prometias tanto. Tanto que é disto que eu escrevo, lentamente como as torneiras se abrem nas madrugadas. Esta dor dói nos canos metálicos e escoa para longe. Não poderia mais depois. Um jogo de alfinetes dobra os meus sinos, que não são grande coisa, mas ninguém saberia dizer isto que, então, antevejo deste lugar escuro. Ver de um último andar pode ser como o miado de gatos numa noite sem lua. As feridas não contam como uma vida. Das minhas sete, prefiro não contar as quedas. Só sei cair no texto. As minhas cartas nunca voltam. Eu não sei o que recebo. Eu tenho uns fios de cabelo cortados amarrados com uma fitinha vermelha. A língua presa se sabe enganada. Mas não, não posso mais nada. Eu apenas sei do teu rosto moreno e das coisas que não retornam. O igual dos dias, não voltarei mais ao impossível de teus braços. É preciso esquecer. Amarro meus cadarços para ir te esperar na saída da escola. Usando meus óculos sérios, de rapaz mau. Os livros que sabes chatos pensam nas minhas costas, mas eu peço a ti, sob o dorso do teu corpo, um beijo e apenas. Não é preciso que os poetas saibam amar, mas apenas que amem, sem preço. É preciso dizer que depois disto todo o impossível lirismo será afogado numa voz rouca e cachaça. Eu não peço mais nada. Eu sei das tuas verdades. queimaremos os violões. Mas eu preciso sacrificar meus olhos, uma vez que basta eles te vislumbrarem, eu nem preciso abrir os olhos para te ver. Eu preciso escutar. Os passos na escada. Eu te disse tantas coisas. Tu me disseste as piores. Meus olhos cegos não tem luz, mas eu desenho bem delineado meus lábios para este último beijo. Não digas mais nada. Eu te quero também, mas apenas beije. E esqueça.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Réquiem desesperado

Suspenda a música, grita a voz sem corpo. Recua desesperado ante a imagem movente no espelho do sonho, o terror feito flores e perfume. Assim, meio abraçado, meio corpo tomado emprestado, meio-a-meio entre o consigo e o contigo, o beijo. O corpo se desfaz da nudez disfarçada e se dá, no sonho, em meio as cortinas de (não importa o fundo da cena, mas isto que grita). Um brilhante saltita dentro do cálice de champanhe. O cheiro é insuportável, mas tudo se suporta. O Atlântico é navegável até mesmo diante da tormenta e do desespero. Mas não se quer sair daqui, quer-se apenas fechar a porta, calar o piano. Tocar o secreto do corpo fingindo, simplesmente fingindo, que ninguém sabe onde fica e o que se deseja. Desistir do grande pensamento. Desistir da humanidade ao se fazer atravessar em xícaras de chá, maquiagem e pílulas multicolores para o amanhã. Um amanhã que é imprescindível que tarde, como é preciso lembrar e temer os roubos. O cansaço devora silenciosamente no aperto do peito, o fígado aberto, bebendo em sangue os temores deste amor que não veio e não se fez e se perde. Nada se faz. Nem bom, nem mal. O piano batido com pressa e raiva, a mão analfabeta que escreve sem sentir, mas sente mal ao sentar-se diante de um grito pintado em cores violentas na tela. O sentir é mais do que a pele. A pele é mais do que o limite do corpo. Há certo querer, uma voz feita mordida, no arroubo silencioso do não-beijo. Aqueles que esperam o final da música sabem que a dor maior já si frustrou lá no intimo do rés dos pêlos. O soco se paralisa no ar, os solavancos suspendem os arrepios. O corpo se arremata contra o corpo sem o desejo violento, sem a posse, apenas, ultimo reflexo de morte, a sorte posta no sangue e na inconsciência. Tudo não passa da inconsistência sonâmbula da vida. Essas coisas, todas, só daqui, pois o aí, não há. Nesta orquestra de bancos vazios e buracos orbitais, se oferece sanguinolento e fétido um coração que se de-compõe do ritmo, quase dragão, unicórnio, borboleta, bombeando o liquido azougue, na treva da voz, fazendo palpitar a insígnia da melancolia. Para as cortinas, o ultimo lamento de uma certeza: uma unha quebrada, no vão das teclas, não sangra.
Eu queria poder escrever o meu grande romance, mas não. Já levei minha senhora ao altar, acendi uma vela e cantei o canto das dores. Uma dor solitária não dói, mas borra a imagem. As energias que correm, meio lentas, meio que cortando os pulsos com faquinha de pão. Mas não, ambos sabemos que nada acontece, mas que estou cansado disso. Dessa franca e fraca novelinha policial. Não há, decerto, o bandido, o último jogo. Eu sequer posso jogar. É dolorido como me ignoras dado querer meu corpo. Não se pode querer duas coisas. Apenas o apertar do laço nos pés e no pescoço poderia dizer a ti do meu não começo. Supostamente há duas concordâncias erradas e eu sei, como sei dizer, que não. Não posso. Há uma dor em agonia. Um esquecimento bem branco, quase místico, de nada poder. Eu queria, e apenas isso, que as luzes das velas no escuro se transformassem em uma pequena certeza, no jogo aberto na mesa, nas cartas dispersas ao vento, nas peças que o vento tira da cena no meu pequeno xadrez. Eu não canso das minhas personagens: a aranha e a lagartixa se portam como deviam ao se posicionar diante do espelho da fome. Apenas o golpe como último suspiro. Não espero mais nem mesmo um abraço.

Cartão

De Rafz

Que a espada de Oyá te ajude a cortar todo o mal e as adversidades que encontrares no meio de teu caminho
Que o vento de Oyá te ajude a trazeres para perto de ti a realização de todos os seus sonhos, desejos e objetivos
E que a sensualidade de Oyá te ajude a encontrar a felicidade do coração e da carne
Epahei!

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

cântico sem voz

olha as flores, é Maria das Dores
quem canta no silêncio deserto
samba no tormento
abrindo o mundo em cores
girando, as escadas, o santo,
não há quem não se encante
o silêncio te escande no reflexo
dos olhos pisca-piscantes do antro
na cama aberta do amante

Itinerário

Para os meus bebês (Lu, Rê e Lee);
Rafz, Bruno, Dan, Rick;
& outros vultos.

A voz se prende ao concreto mais material do além do corpo, bem indiscriminadamente na curva latente, quase máscula, dos cílios longos de rímel. No fundo do palco eu te ouviria dizer algo, só pra mim. Tramando as tranças de mil fios de ódio. Não há nenhum santo para cada dia da semana. Apenas ela, uma santa bárbara, armada de dentes e unhas. Pensei que encontraria a possibilidade transtornada de ser, mas houve, enfim, como chegou em mim, ao fim do roubo. Havia deliciosamente os pratos postos e as postas de salmão nacarado cercado de flores de laranjeira. Como um balanço velho a dor doía bem, indo-e-vindo, (de)terminando os desejos, as alianças, fazendo promessas. Caminhando com as malas, os pecados, os silêncios e os vazios que pesam em ares de pura arrogância deliberada. É isso que tu queres? Não me pedes chorando o meu caminho, meu mapa é uma ligação em suspenso. O aparelho roubado não faz as pontes e os aprontes de meus passos lerdos, com dois dedos machucados e perguntando sobre como perder a poesia. Ou ainda, como ganhar da poesia. Talvez ainda, esquecendo a poesia. Uma escrita triangulada entre três santos que recitam o alfabeto impossível de um livro apócrifo deixado cem anos à frente, para além do futuro possível. A morte como mote de uma herança determinada. O outro, o bem amado, grita de alguns quilômetros. Eu só pediria desculpas na noite do adeus. A voz que eu deveria ouvir eu não ouvi. O decote rasgado em branco e preto. Os botões abertos em preto e branco. A sandália relembra o mendigo de uma Jerusalém latina, na direção do pôr-do-sol, meio andaluz, entre os prédios, na chuva. Nunca pensei que sentiria saudades de casa. Não da casa, mas minha coisa feita casa. Casa das minhas coisas. Sem nome ou privilégio. Bem feiticeira e mesquinha: a malha abre a linha, o ferro a polis. Uma escola de costura, a clínica central, as tantas árvores e tantas mais, as doses cavalares de café, por acaso, compra, vende, troca. A estação me devolve Rimbaud, a cidade me faz Baudelaire, mas de mãos nuas e cortadas, ofereço nada, nem mesmo flores, nem perfumes, mas essa dor, essa gana que lateja naquelas estátuas de mármore fino, plástico encarnado e pedra-sabão. Os vultos que me cercam e prendem e pedem. De novo, só peço desculpas. As cordas me enforcam e são puxadas por tantas mãos. Eu moro na filosofia descontinua do meu (não-)desejo. Castrato, roubo as páginas raspadas dos livros, peneirando os sonhos, os teus com os meus. E pelo resto, as desculpas retém revendo e manchando a prataria e quebrando o espelho. Por tudo suspenso no aberto da mão num aperto de mãos, marcando os rostos na memória, que se esquece de lembrar. Abre a rua, as subidas e descidas, um gargalo: não se preocupando nos casos de ter, mas fazendo ver a lua, diante dos olhos, no retorno ao lugar do castigo, ao som de três apitos.

Cenáculo

Sobre o que desejas, eu posso escrever. Ainda assim, não se diz e não se pode. As coisas que acontecem e que eu insisto no longe de mim. Meio de lado, meio assim, deitado. Meio caveira, meio músculo e meio carne. Como se o corpo devolvesse aquilo que eu não posso te dar aqui e agora. Eu sei que não quero você, sequer também poderia. Eu sei que já repeti isso em algum lugar, mas isso não é importante. O tempo não importa para além do agora. Isso que eu desenho agora neste espaço improvável. O espaço aberto como lacuna na pele. Aqui onde os pêlos se fazem através para desenhar o que não se queria. O meu silêncio não vale o teu silêncio. Os meus machucados se fazem marcas na chuva que ardem. Esta viagem inútil, mas necessária. O que eu abri aqui me ensina o caminho pelas minhas catedrais: toda cúpula de anjos tem do lado de fora as gárgulas sombrias do medo. E se como eu quisesse te dizer de um algo a mais. Um gole forte de café pra sustentar o corpo, surtir o medo, surgir como corpo forte diante do aberto em pó, larvas e concreto disso que eu não quero pra mim. A minha cartografia de horizontes largos lavra seu espaço sem se derramar. Odeio perder a mágica da profunda grandeza das gargantas que abertas eu armo no meu círculo: espetáculo vendido, bem romano, bem pão, salgado como moeda de escravos. Eu queria incluir uma terceira pessoa na cena: mas ela não se inscreve. O eu paira soberano sobre o império ruído dos signos. Apronte as flores do medo, os cristais de desejo. Isso tudo como se faz. As linhas que eu tomo sem destino deste metrô de linhas turvas que me oprime e me dá medo, mas que eu venço, mas também não queria. Assim como ser abandonado por dois apêndices que arrancam as páginas do meu itinerário. Há pessoas que se merecem. Há pessoas que apenas merecem. Eu, sobretudo, pereço no texto epistolar (bem poroso, castelo de areia com três versos sem chave). Ainda quero o meu postal pra enviar sem endereço para o porvir como abraço ao desconhecido.

domingo, 13 de dezembro de 2009

[6] o copo

ressaca de não ter ressaca. o papel traz o saldo da noite. ele não deveria estar assim. é tão estranho quanto acordar num quarto estranho. o banho chama, as águas, como sirenes em alerta; o gosto de pele salgada. arranha, tira o mal das outras mãos. o coração escondido repartido entre dois livros. nada faz sentido. nem mesmo este muquifo cheio até as bordas e sem gelo. é preciso ver o quanto os ossos se esfacelaram. o destino fico sozinho, como as certezas. a lógica não dá mais conta do limite da dor. é preciso para além do desenho, o poema. a possibilidade de abrir o registro e deixar a casa se inundar. é essa a força que importa, a dor que lacera a carne sem arrancar nenhum pedaço. a dor feita sensação cerebral e fria, sem amor. requisito daquilo que a palavra não escreve. que a todo momento no movimento dele, ele persegue enquanto eu o persigo. núbio e dúbio. ambos. é o piano quebrando com os rostos vazios diante da janela, do vidro, do fundo do copo, ali onde o copo despenca.

sábado, 12 de dezembro de 2009

[5] Adaga

ele abre, soturno, o corpo, bem devagar. tem nas mãos duas penas para cumprir a cena. a respiração dói no interior dos ouvidos. um pequeno mistério, de ódio egípcio, o faz salivar. dia de desarte. de resto, apenas resta, ali, comendo devagar as frutas, como quem devora um prato visceral. o all-star machuca o dedo mínimo do pé esquerdo. como todas as dores, é pequena, o corte talvez não seja. há tantos planos que não dão certo. uma adaga mestiça risca um nome, como cartografia, no ar. marujo, o mar é apenas o azul aberto para as outras cores. o mar nunca está sozinho, será sempre, no mínimo, azul e verde. há um ódio premente que aperta a fraqueza. o que seria afinal a escolha errada. eu tenho um número de páginas, mas nem sei o problema. a mão segue. é bom colocar um agasalho e ir para as aturas dos infernos.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

[4] porta-jóias

admiro a pedra, olho através dela o vulto do rapaz. ali, entre as cordas, o arco e o violino, eles tem os olhos puros num desejo. tem as asas bem grandes, como minhas garras. um passo, dois, cuidado, o azul de cabalto estraga o céu. o óleo de linhaça não afrouxa as correias. eu te daria um presente doce. eu tive algumas chances, talvez. mas não. escrever é demais e enjoa, e afasta e não diz o que eu quero te dizer. talvez eu nem queira. o francês que não há, ressona. eu tenho um cadáver para dissecar.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

[3] a pele

bebe devagar, o frasco de perfume ainda está cheio. eu não sei, repito novamente, o que há debaixo dessa pele que me arranha devagar. não posso ilustrar. o carvão acabou com o fogo que o consumiu. corrige devagar este gosto suspenso no ar. eu preciso. esticar o corpo, a pele do rosto, como um tamborim velho, tem apenas marcas. eu abrirei devagar meu livro em tintas sem datas. cortando a cabeça, sem abrir as penas. enquanto isso abra a tranca, os traumas, as cortinas.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

[2] Liebsträum

3 tons de vermelho, por favor. e um amarelo agudo. não quero tecer um rascunho de meu delírio. tome a chávena de sobre o piano. eu te queria, sobretudo, me queria nos teus braços, garota. não te imporia a nota mais aguda e ríspida como a ponta deste pincel. meu querido, Liszt, como eu te quis. e sem igual. assim, meio viciado em poréns e entãos, como as mãos trêmulas queriam tocar teu rosto para além da imagem. talvez eu pudesse, entre tantas portas, ondas, com todos os erres, sem interior influxo, pulmão arrombando o peito, além deste retrato mal feito, te oferecer uma escultura com o correr dos dedos no piano. você apenas não deveria ter me oferecido a sombra, eu no deserto, sem água, cedi: as miragens doem mais quando deixam de ser ilusões. talvez por isso eu liquefaça teu nome neste l sem rotas. sei que não lerás, sei que não entenderás esta nota, mesmo que fosse um rodapé. eu só creio em algo, não neste local, esta árida não se quer area de tons não vivos, quem sabe a tragédia ceda ao drama. pois bem, esqueço teu endereço e perco o sono. a cama resta vazia, mas o espírito inquieto.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Dois corações em tempo de tragédia

Prelúdio [1]

a Andréa

o salão está vazio, nem os quadros o habitam. na vitrola um dueto, talvez, ainda queira ensaiar uma valsa de Stolz. eu não posso fazer assim se abrir a última rosa do verão, eu gostaria, mas tenho o coração cansado como os pés descompassados. eu sequer posso te tirar para dançar. o tempo da dança já passou. está também passando o tempo da música. cabe-nos observar o salão vazio. meio-dia. as cadeiras ao inverso parecem estacas num amplo cemitério. eu ainda quero meu cavalete. não tenho mais voz para cantar, tu bem o sabes que reneguei esta voz rouca aos testamentos mais velhos, dissidentes e dissonantes. eu talvez ainda saiba pintar. segura este copo d'água. pintar diante de teus olhos esta última paisagem, última biografia, talvez retrato, não, sente-se, apenas olhe como os traços dançam no silêncio. esta é a maneira de te deitar, com tintas, meu abraço.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

colando um abraço

ora, sol? o sol queima na pele, como queima os contatos. a pele friccionada contra a pele. tu ainda acreditas que estes brilhantes são verdadeiros? não te enganes, menina freudiana, fazendo vezes de deusa e mortal, tuas asas não são para voar. assim, joga a echarpe, descobre as tuas pérolas. não esquece a sombrinha: mesmo num dia de sol pode chover. eu te digo, tu não me ouves, não me escutas. eu te aprisiono no meu quadro. o cinema é um lugar vazio. tua cadeira está lá, na amplitude, como num cemitério. eu não poderia te guiar na escuridão. não acredito em fantasmas. não posso deixar este lado mefistofélico sem tentar comprar tua alma. eu sei, o preço que valemos. ao mesmo tempo, sabemos o que não queremos. como sair da vitrine? como garantir o sorriso ao final do abraço? como saber que entre os braços, num mesmo abraço, não restará o silêncio apertado num frio mentiroso, num contato forçado, tenso de 110 e 220 w. o choque. não. recuso este espetáculo, prefiro minha cadeira de balanço, a loucura frenética das minhas páginas, o abraço branco do livro que é labirinto onde me perco. tu és aqui meu fantasma. não posso não dizer que sei o que queria te dizer, mas estabeleco a resposta como um abraço. é minha única possibilidade. responder aqui é abraçar o vazio, que se faz quente, assim como os saltos partilhados. não afrouxaremos nossos laços, assim, as marcas de batom na taça de champagne. isso somos nós. marcas deixadas como uma mordida na pele: a lembrança que ainda insiste e que nem mesmo o espelho entende. desliga as flautas e os sopros, apaga a vela, fica no escuro. de tua treva distante, nem mesmo eu posso te salvar. mas ainda assim, posso dizer qual salto podes usar e rasante irromper no horizonte do dia.
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resposta a: http://esquecodemim.blogspot.com/2009/12/um-abraco-partido.html

ballerino

«quanto tempo dura o dia?»

os saltos na mão, pronta para qualquer assalto, os óculos embaçados, os pés nus no asfalto, ela caminha. queria ter pr'onde ir. uma direção. quereria talvez, saber-se no quente, para além dos lençóis. o suor se mistura com as lágrimas. sal com sal. o amargo de dentro com o azedo de fora. um gosto ocre na boca. os faróis passam através. as mãos doem mais do que os rasgos que o asfalto faz ao arranhar a sola dos pés. ela sempre soube como sofrem os pés. uma cicatriz a mais não significa uma dor a mais, muito menos ainda que a dor passou. uma cicatriz a mais é como um vazio a mais: um lugar de espera. o céu negro, sem nuvens. eu tenho me afastadado tanto da imagem, aqui resiste um sujeito que esconde uma lira estranha nos porões da casa. o que se pode esperar? nenhum táxi. nenhum verso. o demônio de dentro sobrevive às alturas, o coração acelerado resiste em queda livre. o bem, o mal - é tudo igual. depressa, na névoa, no ar sujo sumamos! não há motivos para insistir. o salto tem o bico gasto. ela se rebaixa aos cuidados com o que se vê diante dos canhões de carga dupla. os olhos ensaguentados em dor são míopes apenas. se tu quiseres desistir de mim, insiste ela, ainda tens tempo. eu gosto de ti como quem gosta e apenas. eu sobreviveria assim. certas dores apenas doem, mas não matam. há um dia horrível. os marcos da vida. se tudo der certo, apenas me espera, me acena, me dá o meu abraço. sobretudo, guarda os meus beijos. eu quero você tanto bem. eu não sei de deveria acreditar nesta latência de cores, eu não acredito. mas não quero desistir de escrever este romance como possibilidade última de ser postal. e nem podes me enviar o postal que eu desejo. há o baú singelo das lembranças no poluído dos ruídos. e eu nem saberia descrever o teu perfume. quem vem chegando? há um tambor rufando, pessoas felizes. mas do lado de cá a treva insiste. latente, debaixo do sol quente, das ondas do mar, o bucólico irrita, o lírico enjoa, o sem-nada oprime. há uma certa angústia premente. tudo parece tão simples, como o caco de vidro que acabara de lhe penetrar a sola do pé.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

gemido

assim, um copo a mais, um palavra de menos. engole no seco esta lágrima perdida no infímo do silêncio. assim, não se pode dizer assim. como se faz, como se gira, como se entorna a bebida. esquece as páginas. elas nem sequer foram tão importantes.
ele, usando os sapatos da mãe, passa o pó diante do espelho, rímel, lápis, escreve na pele aquilo que não poderia ser dito de outra maneira, ainda, talvez, assim se sabe como se pode. o personagem salta no palco. tem fome, outras fomes ainda mais.
o labirinto é perto. o espelho é confortável, algumas vezes. silência com um gole de uísque ainda. o pé sangra. sangra como se fosse um rasgo aberto no externo. o peito palpita. anseia por um não mais.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A Alma

Um pouco mais tarde, então quando eu estava na escola e possuía algumas noções de cosmografia, tive da alma a representação seguinte, da qual sabia que não era senão um puro fantasma, mas que não estava localizado indissoluvelmente à idéia que eu fazia desta entidade: de uma parte e de outra atravessado por uma longa agulha vertical, um desses feitos leves e secos chamados “colifichets [1]” que se inserem entre as barras das gaiolas para servir de comida aos pequenos pássaros.
É mais provável que esta imagem me tenha sido dada pela seguinte experiência, descrita por um livro elementar de geografia e que transcrevi aqui no que ela chamou [a atenção], sem me inquietar de verificar se a reproduzi exatamente ou não; uma massa de óleo estava em suspensão em algum liquido, atravessa por meio de uma agulha [2] que se anima então de um movimento rápido de rotação: entrando através da agulha a massa de óleo inicia um pouco de pressão esférica, súbita a ação da força centrifuga e se aplaca ligeiramente, fenômeno gracioso aquele que nós podemos conceber este que se produz na terra, que não é rigorosamente esférico, mas deformado de uma maneira análoga àquela em que se deforma a massa de óleo, por efeito de sua rotação autora dos eixos dos pólos; se a rotação da agulha vem a ser muito rápida, a deformação se acentua, pois parte da massa se separa e forma um anel, assim como ocorre com Saturno.
Esta identificação da alma com um colifichet – ou ainda com um crepe de Chandeleur, atravessa de uma mesma maneira em suas partes – reposto, acredito bem, acerca da minha crença na existência substancial de minha alma, eu que não poderiam me imaginar como um corpo sólido feito de uma matéria pouco consistente enquanto isso, e de uma forma rígida por vezes irregular – sólido aninhado talvez em uma ondulação qualquer de meu crânio mais essencialmente aéreo ou sem gravidade, em relação com os pássaros (colifichet) ou os morcegos, e se pode fazer saltar num quarto escuro [3], isso se reproduz – perto do negro do forno, da fumaça grossa e das sombras - como sorte de vôo mal feito comparável ao bater de asas estrábico desses mamíferos noturnos.
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NOTAS

[1] Colifichets são pequenos biscoitos leves que se dão como alimentos aos pássaros, não encontrei equivalente em português.

[2] em alguns pontos a descrição, embora distante e díspar, parece apontar para o fenômeno de funcionamento de uma bússola.

[3] Optei pelo sentido dado por Renée Descartes, quando alude a ele Delacroix, uma vez que o uso dado a poêle por Michel Leiris dá abertura a um jogo semântico de nuances variáveis: sendo ao seu turno a frigideira, o crepe mortuário, etc.

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Tradução de um fragmento de L’âge d’homme, de Michel Leiris.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

PES-A-DELO (ou: pas au-delà)

(o relógio do coelho pensante parou).

a cabeça tem um abismo. prende estes cachos ruivos teimosos. uma condenação sanguínea atravessa em sonhos os olhos abertos. a nuca ressente uma mordida vazia que nunca houve. os cabelos, no barulho terrorista do ventilador, parecem pétalas úmidas se desfolhando ao sopro sedutor. isso se chama insônia. isso se chama rasgo de cafeína numa noite. abaixo do arco-íris a minha própria íris me engole. o buraco. ela se sente doente, o corpo morto mal (se) movimenta (n)os dedos. nua na cama, a pele ainda molhada pelo banho gelado, faz tremeluzir a silhueta à luz das velas dispostas em um canto qualquer. o canto do demônio devorador dos papéis raros. o vento gelado no seio alvos endurece os mamilos, o róseo das coxas se perde num gemido. há uma cicatriz no joelho esquerdo. assim como há também um tapa de um cafajeste suspenso na cara (isso faz algum tempo?). olho o agora. ela insiste dentro do vidro, o caixão de cristal rumoreja. a bela não dorme, por mais que queira. as cores não são mais propriedades, mas efeitos lisérgicos no astigmatismo que se prende nas retinas. ela se afoga. nada comeu. nada bebeu. põe o dedo na garganta, precisa vomitar. como tantas outras coisas, não consegue. todas suas velhas cicatrizes marcadas no globo velho de sua sala-de-estar doem angustiosamente. uma num tubo de ensaios. outra entre jornais. outra num labirinto sem alçapão. e tantos outros roteiros errados. ela quer se vestir com as páginas, insiste, empilha os livros, dispõe arquitetonicamente dos volumes. rejeita os dicionários. ela que sabe ter toda a compostura e feita musa, mais que uma estrela, ela que ainda precisa durar. as roupas desmoronam ao chão. restam os óculos como máscara que ela tateia à procura. entre sedas negras e fios dourados, ela beija sua própria mão. é sua dama, seu próprio cavalheiro. sem desejo. ela não é mais esta carne. está além do último círculo concêntrico racional. a matemática não contempla mais sua lógica. nem se poderia chamar de lógica este sentir. ela quer ainda assim tocar o ar. procura no escuro das chamas a sapatilha, mas apenas o pé dói. mas o coração perdido, bem lírico, dói mais. só restam os livros e a fúria tenebrosa batendo em um piano com as unhas longas. e batendo e batendo como sinos da madrugada. será um resto de relógio preso na garganta? ela tenta pedir ajuda, mas o aquário é mudo. bate uma nota a mais, segura o pedal sinfônico, mantém em sustenido este sentido na direção do teu grito de desejo. há calores se abrindo como péroladas serpentes no umbigo. é indefinível o vulto invisível ao espelho. eu quero ter teu beijo. um universo cindido em dois. ou mais, ou apenas, ou ainda mais. daqui eu seguro teu sapatinho de cristal e cuidas do meu pequeno de rubi. encontro no meio de um parágrafo. a datilógrafa suspende um soluço em busca da solução. uma aspirina: solução química. mas nem você com suas leis aparece. ou mesmo você que carrega livros entre os arranha-céus. ou tu que querias apenas estas mãos. o mundo se abre no fundo negro e refratário de um par de olhos. linda e selvagem, com toda a classe tornada salto-alto, ela se levanta, ereta, sustenta com equilíbrio a própria dignidade dos séculos. está sem os saltos, se dá conta. recompõe o cabelo. uma fivelinha com um pequenino diamante (presente de um amante, pudera....) prende as labaredas. os cavalos relincham à porta do quarto. o mar, aos poucos, inunda a noite. ela perfuma delicadamente o pescoço e os pulsos. morde os lábios para devolver um pouco de cor a este quadro velho. ao alcance de sua mão (o arsênico?) envia colibris com mensagens para além da fechadura. nua, se duplica em duas. senta-se diante de si, vulto recortado na escuridão de pedra, para jogar um xadrez musical. sente-se, ainda, doente. eu preciso insistir daqui mais uma vez e soprando deixo tuas velas no escuro. ela deseja um corpo distante, talvez deseje seu corpo. o signo do esquecimento dói obliterado no cravo seco dentro do 3º romance, 7ª prateleira, balzac. respira, ainda vive. está acordada. é preciso implorar, por favor, Alice, dorme logo, meu bem.