quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A Alma

Um pouco mais tarde, então quando eu estava na escola e possuía algumas noções de cosmografia, tive da alma a representação seguinte, da qual sabia que não era senão um puro fantasma, mas que não estava localizado indissoluvelmente à idéia que eu fazia desta entidade: de uma parte e de outra atravessado por uma longa agulha vertical, um desses feitos leves e secos chamados “colifichets [1]” que se inserem entre as barras das gaiolas para servir de comida aos pequenos pássaros.
É mais provável que esta imagem me tenha sido dada pela seguinte experiência, descrita por um livro elementar de geografia e que transcrevi aqui no que ela chamou [a atenção], sem me inquietar de verificar se a reproduzi exatamente ou não; uma massa de óleo estava em suspensão em algum liquido, atravessa por meio de uma agulha [2] que se anima então de um movimento rápido de rotação: entrando através da agulha a massa de óleo inicia um pouco de pressão esférica, súbita a ação da força centrifuga e se aplaca ligeiramente, fenômeno gracioso aquele que nós podemos conceber este que se produz na terra, que não é rigorosamente esférico, mas deformado de uma maneira análoga àquela em que se deforma a massa de óleo, por efeito de sua rotação autora dos eixos dos pólos; se a rotação da agulha vem a ser muito rápida, a deformação se acentua, pois parte da massa se separa e forma um anel, assim como ocorre com Saturno.
Esta identificação da alma com um colifichet – ou ainda com um crepe de Chandeleur, atravessa de uma mesma maneira em suas partes – reposto, acredito bem, acerca da minha crença na existência substancial de minha alma, eu que não poderiam me imaginar como um corpo sólido feito de uma matéria pouco consistente enquanto isso, e de uma forma rígida por vezes irregular – sólido aninhado talvez em uma ondulação qualquer de meu crânio mais essencialmente aéreo ou sem gravidade, em relação com os pássaros (colifichet) ou os morcegos, e se pode fazer saltar num quarto escuro [3], isso se reproduz – perto do negro do forno, da fumaça grossa e das sombras - como sorte de vôo mal feito comparável ao bater de asas estrábico desses mamíferos noturnos.
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NOTAS

[1] Colifichets são pequenos biscoitos leves que se dão como alimentos aos pássaros, não encontrei equivalente em português.

[2] em alguns pontos a descrição, embora distante e díspar, parece apontar para o fenômeno de funcionamento de uma bússola.

[3] Optei pelo sentido dado por Renée Descartes, quando alude a ele Delacroix, uma vez que o uso dado a poêle por Michel Leiris dá abertura a um jogo semântico de nuances variáveis: sendo ao seu turno a frigideira, o crepe mortuário, etc.

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Tradução de um fragmento de L’âge d’homme, de Michel Leiris.

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