quarta-feira, 6 de abril de 2011

Digressões sobre o “Eu te amo” (1)

“Pelo fato de me parecer a mim – ou toda gente – que uma coisa é assim, não segue que ela o seja. O que podemos perguntar é se faz sentido duvidar dela” (Wittgenstein, 1965, p. 15).

(Valeria a busca de um procedimento para verificar a existência dos unicórnios?)

Em seu verbete acerca do “Eu te amo”, em Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes escreve que o eu-te-amo [je-t-aime] não se refere a declaração do amor, sua confissão, mas ao proferir repetido do grito de amor (1977, p.175 ). Isto, nos termos propostos por Barthes, implica que passada a primeira confissão, “eu te amo” não quer dizer mais nada. Desta forma, o “eu te amo” não seria uma frase, mas um performativo, realiza uma ação (poder-se-ia indagar até que ponto ele não é reação ou reconhecimento/iluminação de um condição/estado ao que o sujeito está submetido naquele momento), desta forma nas condições desta “afirmação”, ao proferir “eu te amo” o sujeito goza (de sua fantasia ou de sua perversidade, dado que há a insistência na resposta, na espera de que a voz do outro confirme o acontecimento).

É possível, desta maneira, dizer que o “eu te amo” funda sua cena [Verhältnisse], que no caso, é cena (Barthes, 1977, p.243) de uma demanda, busca não a contestação, mas a reiteração recíproca [Verhältnis]. Observem-se as possibilidades de resposta/reação:

(1) Eu te amo / Eu também te amo.

(2) Eu te amo / Eu também.

(3) Eu te amo / Como?

(4) Eu te amo / (silêncio).

Quais os tipos de inscrições afetivas se colocam nestas cenas? Quais seus significados ou as direções de seus sentidos? Tendo, como pano de fundo, que a maioria dos sujeitos é incapaz de suportar o desmoronamento de seus fantasmas ou o fracasso de seus desejos (sem substituí-los por novas ilusões), na acepção comum, o “eu te amo” imporia como movimento reflectivo/reflexivo os primeiros itens, numa recusa ao abismo do silêncio.

Por outro lado, se (em análise) as queixas, os sintomas, os fantasmas são discursos que podem ser concebidos enquanto um discurso de amor para um outro impossível (por ser insatisfatório, fugaz, incapaz de preencher as demandas ou os desejos do sujeito – o que talvez o torne, por isso, mais real em sua vacância).

Barthes ainda oferece a gradação e a distinção entre:

(5) Eu te amo [ Je t’aime].

(6) Eu o amo [Je l’aime].

(7) Ariane, eu te amo [Ariane, je t’aime – proferido por Dionísio].

Na relação estrutural a passagem do pronome oblíquo átono de segunda pessoa para a terceira, ou ainda a predicação do gesto, imporiam o deslocamento (da ênfase) da posição do sujeito para o lugar do objeto, caracterizando outra dimensão da relação nos termos postos em linguagem.

Haveria assim, no eu te amo, um uso tão especializado e próximo (ainda que mobilizando diferentes funções) daquele que identifica Wittgenstein diante do problema do “eu sei” (ambos exprimem a relação entre o Eu e um fato): como se sabe? O outro também sabe? Bem, como a relação com a questão de como se demonstra uma ilusão (1965, p. 17- 21).

No âmbito da busca e da afirmação de uma verdade, Barthes relata que todo episódio de linguagem reporta a “sensação de verdade” (1975, p. 271) que o sujeito prova ao pensar em seu amor, que se cinde em duas direções:

(9) que ele creia ser o único a ter o objeto amado “em sua verdade”;

(10) que ele defina a especialidade de sua própria exigência como uma verdade na qual ele não pode ceder.

Porém, qual a implicação desta verdade, quando ao se por em linguagem, através do ato performativo do “eu te amo”, este implicaria no fantasma de sua resposta. Isto, ao exigir a concordância do outro com o fato e sua reciprocidade, não abriria a dimensão habermasiana do acordo? Não obstante, isto não entraria de todo em contradição com os princípios de uma dialética do desejo, dado que “meu desejo é o desejo do outro”. Como tencionar o trânsito entre concepções tão dispares?

Por outro lado, para além da assertiva do amor, há as questões que envolvem o próprio do amor e sua disjunção com a esfera do desejo. Seria possível, nestes termos, pensar que entre o que se afirma em linguagem e o que estaria latente no corpo (dado que, segundo a tradição, o amor estaria sediado no coração) há um atravessamento de sentido(s)?

Em Introdução ao narcisismo, ensaio de 1914, Freud afirma que: “boa parte da insatisfação do homem apaixonado, a dúvida quanto ao amor da mulher, a queixa aos enigmas do seu ser, tem sua raiz, nessa incongruência entre os tipos de escolha de objeto” (2010, p. 34-5). O que faz com que Freud abra a questão de que “uma pessoa ama”:

* Conforme o tipo narcísico:

(11) O que ela mesma é (a si mesma);

(12) O que ela mesma foi;

(13) O que ela mesma gostaria de ser,

(14) A pessoa que foi parte dela mesma.

* Conforme o “tipo de apoio”:

(15) A mulher nutriz;

(16) O homem protetor.

O interessante deste ensaio é que a escolha de objeto narcísica para homossexualidade masculina, diz Freud, “é algo para ser apreciado em outro contexto” (2010, p.36).

A exigência e a transformação de um fato de linguagem em um performativo (em que a linguagem incide sobre a realidade, enquanto veredicto = verdade dita) no caso do “eu te amo”, poderia ser explicada pela busca de sua “completude”, ao receber do outro a confirmação do fato, dado que Freud afirma que “a dependência do objeto amado tem efeito rebaixador, o apaixonado é humilde. Alguém que ama perdeu, por assim dizer, uma parte de seu narcisismo, e apenas sendo amado pode reavê-la (Freud, 2010, p. 46)”. Isto por si só é satisfatório para responder a esta questão, se por outro lado, como o próprio Freud afirma, em Luto e melancolia (1917 [1915]) que: “o ser humano não gosta de abandonar uma posição libidinal, mesmo quando um substituto já se anuncia” (2010, p.173).

Como entender neste âmbito, ainda, o que escreve Wittgenstein em torno de 1932 e 34, ao afimar (axiomaticamente): ““Não brinques com o que se encontra nas profundezas de outra pessoa” (1980, p.41)”; e em 1948, “O enamorado feliz e o apaixonado feliz tem cada qual seu ‘pathos’ próprio. Mas é mais difícil ser um enamorado infeliz do que um apaixonado infeliz” (1980, p. 112). Ou mais ainda que: “A maior felicidade do homem é o amor. Supostamente, dizes do esquizofrênico; ele não ama, não consegue amar, recusa-se a amar: qual a diferença?!” (1980, p. 113).

Observação: de acordo ainda com Freud, este breve esboço detém seu caráter paranóico, por ceder aos impulsos às construções de sistemas especulativos.

Continuo, em breve, com estas digressões…

Referências:

BARTHES, Roland. Fragments d’un discours amoureux. Paris: Éditions du Seuil, 1977.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

WITTEGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Trad. Maria Elisa Costa. Lisboa: Edições 70, 1965.

_____. Cultura e valor. Trad. Jorge Mendes. Lisboa: Anos 70, 1980.

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