terça-feira, 18 de agosto de 2009

toilette

o gemido claudicante do piano implora que não esqueças. desfaço a maquiagem, os olhos borrados, os dedos azuis. um filete de sangue escorre do terceiro dente, perto do canino. o olho se descortina em escura névoa. eu, eu mesma, retiro as pérolas róseas como a pele que tocam. os dentes precisam de carne, de outro sangue. chove como saliva na superfície do espelho repleta com as dores que escapam do porta-jóias. o frio cristal. há a dor daquilo que não há. as notas se imprimem no fundo dos ouvidos, arrepiando os pêlos, ali nas marcas não deixadas no corpo pela pressão de teus braços, de teus lábios. o peito tem necessidade de espaço. o que se encontra no fundo falso do espelho nada mais é que o duplo certeiro de uma mulher que se aperta em seu corpete e não se deixa escapar nas cartas que escreve. duas vias. duas mãos. o silêncio que geme no letra-a-letra. a curva que treme o pulso. o vidro me esconde. o estômago vibra a liquidez de um gesto rarefeito. um gole amargo d'água. o peito marca um grito. os passos que não ecoam no quarto. tão telegráfica e reduzida às chamadas, à campanhia. sinos doloridos de casarão vazio. os diamantes ainda pendem majestosos das orelhas. alma velha mergulhada em finos champanhes e uísque. asas de um anjo branco de capote. a névoa, para além das cortinas de veludo vermelho e da mágoa pesada dos móveis centenários, engole as cartas. idéia cortada por assépticos bisturis. sem anestesia. pedra sobre pedra. gesso sobre a cara deslavada, preservando o impossível de vida sob a caveira. sem segredos a serem revelados. dor à revelia. o rosto humano visualmente exposto num furor de besta civilizada. cada piscadela apaga uma letra desta lápide indigesta. as navalhas abertas sob os lençóis de seda do leito abandonado. o piano rouco. o céu recolhe estrelas. restam os violinos. e a maquiagem desfeita - um múrmurio baixinho, os gemidos engolidos pela nobreza - um traço de lápis delinea o limite, maquiagem refeita. a verdade aos olhos escapa, mas se deixa rir. e se deixa ir.

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