A ducha
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
Ritornello
A água
escoa lentamente pelo ralo, cabeça baixa. Comigo é sempre a mesma coisa. A
glândula lacrimal é o avesso do ralo. O que me dói de leve, nem tão leve assim,
é o que tento lavar esfregando o rosto. Choro, mas não é shampoo, a Johnson & Johnson
impediu que os shampoos ajudassem a lavar a alma. O que dói é isto que se
repete eternamente. Queria entender o motivo de ser trocado, a esmo, sempre
pelo mesmo clichê cacofônico de língua presa. É aqueles momentos em que uma
biblioteca imponente espanta, mas no fundo uma biblioteca é só um amontoado de
livros. A inteligência sempre se defronta com espelho e perde. É sempre a mesma
batalha no exercício socrático da paciência, jogando o jogo de empilhar livros
pelos cantos. Quando não se tem o charme o suficiente, mas se sabe palavras
demais. Quando se diz e se pisca e se
sorri. O que lateja é a inverdade do fato: todos dizem que suspenderiam a
beleza pela inteligência, mas no correr dos autos é sempre o contrário. Talvez até
eu poderia ser culpado deste crime. Mas me recuso. Sempre recuso: digo não. O digno
não! É tão pouco o que eu desejo ou anseio, mas é daquelas coisas que não se
pode pedir, não se pode implorar, é preciso descobrir no anseio velado do bater
das pálpebras. Aquiescer é sempre como esquecer. E me sinto tão impotente
pensando nisso, porque no fundo não há nada a ser feito. Livros impressionam,
mas assustam. Um bíceps sempre pode ser superado, Dostoiévski não! A falta de
tato e charme dos dias, tornando a beleza comercial, vulgar, massiva e
enlatada... tão enlatada que ela vem com 12 abdominais de brinde e suplemento
alimentar. Quando o que tenho na despensa vale mais, meus patês, minha geleia de mirtilo, meus queijos... o
traçado do teus olhos que você não viu e sequer percebeu. Que não saiu certo,
mas não saiu torto. O que dói é que um erro de ortografia é desprezado, mas sempre é visto, esta fissura que corta uma sinapse ao meio e diz "como?" e que se impele, achando-se claramente superior, mas desanda sempre e tropeça. De todo, perdi a beleza. A razão sempre vence no final, mas
vence porque é fascista e uma vitória destas não é vitória: é apenas revanche,
impossível vencer, destrói tudo pelo caminho. Mantendo a classe e a frieza de
um bisturi desenhando na pele a cicatriz de uma dor não vista. talvez não
devesse escrever isto, ou sobre isto ainda, mas é que dói. E o banho como
chafariz não enche o buraco, não lava... se cola na pele como mais um não,
menos um tanto, mais um borrão. E as páginas que se viram e se descolam, os
livros que se desmontam, o desejo sempre cede a uma foto no banheiro da
academia. Uma foto com um livro, que sedução poderia ter? À sangue frio, não
Capote, não é a beleza inútil e sem o clichê de pontos de vistas... Eu e meu
quebra-cabeças pela metade. As vezes seria bom não-saber e não supor-saber, me
perder de mim. Mas a ducha não lava a alma, como a chuva não aquieta o coração
apertado. Cena em sépia: champagne e Marlene Diettrich. Talvez seja hora de
dormir pra se esquecer, o problema que acordar com mão alçada ao despertador,
no vazio amplo dos lençóis baguçados, nenhum sorriso, nenhum contato, só a
imensidão do quarto de paredes nuas. Um café rápido. Gole seco. Grito molhado que escorre garganta adentro. Silêncio. É preciso aquiescer ao que resta como última
e única possibilidade: Que livro ler por agora?
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