(Para Michele Martins de Oliveira)
É preciso entender, antes de realizar
uma leitura sociológica, qual a aparência formal que esta
narrativa, dado que a forma do desenho-seriado nada mais é que um modo
de contar um relato, assume. É uma aventura, certamente, mas o modelo
padrão escapa ao modo épico, mas se sujeita ao elemento trágico, conformado,
sobretudo na padronização de uma “herança trágica”, que pode ser traduzida num
elemento proustiano, como em La Recherche: nos pontos em que a
narrativa é uma narrativa de gerações (no caso trágico, por exemplo, se pode
situar isto na passagem do Édipo para Antígona): tem-se Goku, depois Gohan,
depois Goten (ainda que no mesmo grau de parentesco que Gohan), Pan (neta de
Goku) e Goku Jr. (bisneto de Goku e filho de Pan que aparece no último episódio
de Dragon Ball GT).
O elemento grego aqui é salientado por
outro ponto de vista, que aqui interessaria ao relato. Se rejeito a questão do
épico, é justamente por deixar de lado a conformação de um ethos,
enquanto o ideal de uma comunidade, para salientar o fundamento da pólis.
Há que se observar que a mesma dimensão dúplice entre homens e deuses é
retraduzida na animação: uma instituição como a dos Senhores Kaio [Kaioshins],
bem como Kami Sama, que são personagens (“quase-que”) imortais que decidem e
estão acima dos humanos, como grandes gerentes (ou reguladores) da instituição
cósmica, seja dos sistemas planetários, seja do planeta Terra, seja ainda da
vida após a morte (como é o caso do Sr. Enmadaio), cujo papel é, de certa
forma, uma garantia funcional.
A hipótese trágica ainda se sustenta na
manutenção do mote que dá origem a animação: a satisfação do desejo. Bulma é
impelida, por seu desejo por um “namorado perfeito”, na busca das esferas do
dragão e no processo conhece Goku (que possui uma das esferas). Os
vilões, que de início também partilham esta busca (sendo o desejo de imortalidade uma
possível tradução do conceito se soberania). De outro lado ainda, o
destino geral da comunidade é posto nas mãos de um estrageiro: se Édipo, como
soberano de Tebas, é um estrangeiro, não obstante seu drama é que é um filho de
Tebas, temos que Goku, é estrangeiro (um sayajin), mas não obstante seu ponto
de pertença é terráqueo (o que instaura o paradoxo, por exemplo, dele ter sido
enviado para destruir a terra e acabar por defendê-la – na inversão de
significações a partir de um significante-mestre que acabar por dar novas
significações ao que anteriormente exposto, procedimento recorrente na
tragédia). Porém, o drama apesar de sua aparência trágica se resolve
de uma maneira pouco grega: tudo sempre acaba bem. Solução pequeno-burguesa e
idealizada em que após uma serie de eventos catastróficos a paz, ainda que por
um curto período, pode ser desfrutada.
Duas perguntas então podem ser situadas
nas passagens da gerações, tal como apreendidas em DB, DBZ e DBGT: se o tempo
passa, (1) como o espaço configurado pela animação situa suas próprias
mudanças; e,(2) quais as mudanças estruturais e sociais travadas
e encenadas na representação destas cidades?
Da cidade rústica com dinossauros
à Cosmopólis de Trunks (“o do futuro”), quais os entrechoques
de representação aí? É claramente evidenciada que toda transformação histórica
pressupõe uma transformação no espaço, embora no espaço híbrido de Dragon ball,
tais transformações são sobretudo de uma sobredeterminação sócio-cultural. Explico:
cidades ultratecnológicas, como a de Bulma, coexistem ao lado de vilas pré-históricas
(o que serve como alegoria para condição do nosso mundo contemporâneo, já que
há locais bem-desenvolvidos e outros que ainda, por razões culturais, mantém-se
com uma tecnologia “artesanal”), fazendo com a
linearidade cronológica possa ser cindir em tempos que possuem suas
próprias variáveis: tecnologia, organização humana (violência/barbárie),
sociabilidade. Não apenas as cidades e comunidades que são representadas ao
longo da animação variam, como os próprios planetas visitados oferecem
"complexos culturais" que favorecem a polissemia que a vida (tomada
entre experiência [Erfahrung] e vivência [Erlebnis]) assume (desde
a-história, como o ponto observador, da morada dos Kaios e de Kami-Sama, ao
momento pós-histórico do julgamento das almas por Enmadaio, que podem ser
enviadas a vida, isto é, novamente à história por Shenlong – ver o caso de Kuririn).
Na esfera
da vivência, saturada de eventos e sensações, resta ao seres em questão, os
habitantes destas cidades (terráqueos, saiajins, namekuseijins, etc), a
capacidade de reagir a estes estímulos, bem como aos intrusos – sempre alteridades
radicais e por isso vilões dentro da narrativa). Numa abordagem freudiana: toda
chegada de um vilão é traumática, já que a imposição de seu desejo ultrapassa a
demanda destes “pequenos outros” que tentam, então, resistir a sua vontade
imperiosa. O interessante também aqui é como o conceito de humano é
relativizado: já que terráqueo ou namekuseijin marcam os planetas de origem, no
caso a Terra ou Namekusei, a enfática a raça aparece no caso dos sayajins cuja
origem está no planeta Vegeta. Há, portanto, a retomada de um tema biopolítico dentro de um tema darwinista:
qual é a raça superior capaz de colonizar (leia-se “imperar”) no universo? – O
que instaura um debate étnico , que é uma das variáveis da animação no âmbito
de sua representação, já que as raças em questão se organizam em estruturas
políticas, econômicas e sociais que
configuram tanto a estética (arquitetura) de seus espaço, quando sua geografia.
Assim é que dos planetas rurais (Namekusei) aos planetas marciais de regime
espartano (Vegeta), o degradé
civilizatório se arma: há mundos em ruínas (como Alpha, na Galáxia Sul,
arrasado e inabitado), desérticos (como Arlia, mas que possuem vida
inteligente), hiper-tecnocratas (como o planeta-máquina Big Ghetti Star) etc.
No caso das
cidades de DBZ, sua memória pouco marca destes traumas, não há registros
urbanos do que aconteceu, isto se supervalorizarmos a dimensão da história
sobre a geografia, isto é, o dado diacrônico. No dado sincrônico, em que o
espaço pode ser mapeado (assim, a geografia suplanta a história, já que em
termos o que se tem é sempre a enfática de um presente, mesmo quando Mirai Trunks
viaja do futuro, por exemplo). Um dado interessante por exemplo, é que o único
momento em aparece um narrador para a história em Dragon Ball é na abertura do
desenho em que este assume a voz que vai assinalar em que ponto da aventura
(episódio) se esta, dando um título para o “capítulo” em questão.
Há elementos que são reiterados ao
longo de toda animação, que fundam a circulação dos personagens: como a ilha de
Mestre Kame, o deserto Yamcha, a montanha Frypan, a ilha Papaya (onde se
realiza o torneio de artes marciais intitulado Tenkaichi Budokai), a Capital do
Oeste (cidade de Bulma onde fica localizada a
Corporação Cápsula, uma espécie de monopólio no mercado mundial similar
a Umbrella Corporation de Resident Evil,
embora os limites destas avancem no terreno dos produtos farmacêuticos,
armamentos, computadores e outras atividades clandestinas de pesquisa
biológica, aquela produz também elementos técnicos variados, mas é enquadrada
ao estilo de um "bom modelo"), etc. Outro dado relevante é a
estruturação cardeal num eco claramente cristão, já que reflete a estrutura
celestial ( Sr. Kaio do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste) que se expressa nas
capitais, também do Leste, Oeste, Sul, Norte e Central.
Bom, o enfoque claro do desenho são
nestes heróis, marcados por uma personalidade exploradora, em sentido amplo, e
aventureira. São pessoas fora da ordem social pré-estabelecida ou mesmo, para
nos expressarmos em jargão marxista, fora da luta de classes. Por outro lado,
expressão de um modo muito singular a dialética do senhor e do escravo, com
enfoque na luta originária (dois homens lutam por reconhecimento). De
profissões efetivas (liberais), pouco se retrata, a não ser no mercado anônimo
ou como pano-de-fundo do desenho, como algo que dá suporte a manutenção da vida
(os restaurantes, mercados populares, escolas, etc). A profissão-chave é a de
lutador e guerreiro (a maior parte dos personagens com nome se enquadra aqui),
o que enfatiza o caráter militar da animação, há ainda os doutores (embora não
se saiba exatamente em quê) e cientistas (como Myuu, o “mau” Dr. Maki Gero e o “bom” Dr. Brief), feiticeiros, mágico e magos
(Bibidi, Hoi e Uranai Baba), monges (Kuririn e Yajirobe), professores (a maior
parte dos “conhecidos” são professores de artes marciais, como Sr. Satan e
Mestre Kame), mas há também personagens paralelos como Mestre Karin, cuja
função não é muito clara, mas sabe-se que é quem cultiva as sementes dos deuses [senzu
beans], Mez que é um ogro que cuida e
ajuda a administrar o inferno, Nappa que é um guerreiro, mas também é o guarda-espadas
de Vegeta que por sinal é um príncipe, como Ox King é rei (rei Cutelo), Pui Pui
que é guarda-costas de Badidi, como há há
fazendeiros, andróides, robôs, mercenários, ladrões (Yamcha, por exemplo é um
ladrão do deserto). Em meio a isto, seguem-se personagens menores que também
mereceriam uma leitura mais pontual, como é o caso do câmera man que registra o
torneio de Cell e o repórter sem nome que o acompanha, os comentaristas Bodoukai,
Lunch que é cozinheira, mas como leitura de oposição há ainda as donas de casa
Sra. Brief (burguesa) e Chi Chi (que embora seja filha do rei Cutelo e,
portanto, uma princesa, age por vezes como uma dona de casa de classe média) e,
por fim, o Sr. Popo, que é negro com turbante indiano, que é o ajudante de Kami
Sama da Terra.
De resto, a pergunta que
fica é: como a nossa cultura (se compreendermos cultura como um Todo que abarca desde as
expressões artísticas, as instituições humanas, a trama discursiva –isto é,
história, economia, política, etc - a conceitos abstratos tais como liberdade,
igualdade, etc) é representada? Como os sistemas alegóricos e dispares da
ficção proporcionam uma leitura de nossa realidade, revisitando seus
problemas e tensões? Como dar potência crítica a
animação através do nosso contraponto cotidiano? Como as relações, para além do
projeto visual, demonstram estes seres relacionando-se com seu espaço e uns com
outros, como isto pode (e deve) ser lido alegórica, metafórica
ou metonimicamente como um reflexo da cultura (e qual noção cultural
específica, já que na dimensão singular do desenho, nasce na cultura japonesa,
como mangá shounen, lançado no Brasil pela editora Abril e
veiculado pela rede Globo, em 2001) - questões levantadas nas abordagens
de Sônia Luyten.
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Nota:
Este texto segue dedicado a Michele justamente por responder a um pedido de comentário ao seu Trabalho de Conclusão do Curso de Geografia. Não tendo tido acesso ao trabalho final, mas apenas a fragmento dele, tencionei desenhar aqui um modo de operar uma leitura em suas diretrizes mais genéricas, apontando possibilidades e caminhos, apesar de não realizar, em absoluto, nenhuma espécie de hipótese teórica.
*-* Seu LINDO! Uma visão dessa sobre o start que eu dei com meu trabalho só amplia tudo! Eu bem que queria fazer o caminho oposto, do tipo, o que os desenhos influenciam na "urbanidade" dos habitantes das cidades, porém é muito difícil documentar isso, tornar isso palpável, já esse caminho que segui de representação do mundo "real" é fantástico e cada vez que mergulho, dou saltinhos de alegria auiheuiaheuie.
ResponderExcluirSó de pensar que meu trabalho é, de fato, relevante fico muito feliz! =D
Obrigada pelos incentivos e análises <3