quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Hipótese III

O frio doía na pele, já vermelha de tanto friccionar com as mãos tentando se aquecer. Chovia muito. Os saltos finos mergulhavam em poças d’água suja, o jeans colava-se a pele, a chemise de linho deixava entrever o corpo bem-feito. Bebera demais. Os cabelos curtos caiam sobre o rosto. A cidade parecia morta e não havia nenhum táxi à vista. Os faróis passavam rápidos. Os prédios se faziam sombras tímidas, como torreões medievais cuja donzela se perdera. A maquiagem, como todo resquício de dignidade, escorria e parecia arrancar a pele. A chuva açoitava, mas o que mais doía era o vento zunindo nas orelhas. Ela não perguntava o porquê disso. Três daiquiris a mais do que devia e um pequeno infortúnio fizeram isso. Mentira. Ela escolheu isso. Já deveria estar acostumada à chuva e a solidão, o elemento novo era, no entanto, a bebedeira. Ela sempre odiara beber, porém aquela noite, entre a luzes enigmáticas, entre os corpos se oferecendo, entre a música que lhe forçava os tímpanos, escolhera o fundo do copo. Erro óbvio, como tudo que fizera. O copo entornado tornou tortuosos os caminhos do corpo. Não deveria ter saído. Não mesmo. Mas depois desta noite o que restasse de si estaria um pouco mais forte, um pouco mais resistente, pensava tentando manter alguma salvação. Os pés anestesiados pela água gelada nem doíam. Ela só queria um banho quente, sua cama, seu gato e nada mais. Tudo parecia rejeitá-la, mas ela sabia que no fundo era ela mesma que não queria nada daquilo. A vida não poderia se resumir a isto. Poderia ser muito mais simples que isso ou muito pior, mas não queria assim. Não queria se fazer vítima, mas recusava a oferecer seu corpo como banquete para um marmanjo desconhecido. Não, assim não queria. Precisava ter algum sentido, fazer algum sentido. No entanto, tudo parecia dizer que não. Um carro estranho parou, ele gritou alguma coisa, ela, com a mão, retirou a franja que caía sobre o rosto, os olhos verdes dela pareciam habituados com o frio deslocado.
- Não, obrigada... já estou perto de casa...
O estranho assentira, fechou o vidro e tornou ao seu caminho. Ela sabia ser muito convincente, mas mentira, teria de andar muito ainda. Não, não queria estranhos agora. Odiava isso. Não queria precisar de alguém, era horrível demais pensar que a sua felicidade poderia estar na mão de um estranho. Ela era feliz, só não estava naquele momento. Depois do fundo do poço, depois do efetivo fundo do poço ela estaria bem. E, bem, as circunstâncias que se encontrava poderiam ser literalmente o fundo do poço: estava confusa, tinha frio, havia muita água e a escuridão. Apesar de tudo ela sabia que iria sobreviver, precisava apenas andar.

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