quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Hipótese I

É preciso escovar os cabelos com força, ela repetia, os dedos agarrados fortes a escova que se fazia vezes de espada. Talvez escovasse tantos os cabelos na tentativa de perder a cabeça. Os fios ruivos sempre se desalinhavam. Revoltos pairavam diante do verde profundo dos olhos. A camisola branca deixava transparecer as pintas como pequenas manchas na seda. No dia de hoje só restava a ela se lembrar do dia de ontem. Nem precisara escrever uma página ou duas no diário surrado que carregava. As coisas doíam na pele. Pensava em tantas coisas enquanto se olhava no espelho escovando os cabelos vigorosamente. O banho talvez tivesse dito de algo a mais, mas era algo que não estava no corpo, não parecia no corpo, que parecia atravessar o corpo que doía. Como uma dor sem direção, numa eletricidade macabra, como se predissesse algum mau augúrio. Não obstante não conseguia acreditar na má sorte, se houve alguma, ela já tinha chegado a ela. Os dados já tinham sido lançados e a sorte já tinha sido repartida. Queria dormir e se esquecer, mas parecia impossível fugir ao espaço que se confinara. O quarto não era tão seguro assim, bem como um quarto de hora poderia ser tão criminosamente dolorido que as escovadas no cabelo não diriam nada. Não escovava os cabelos para ficar bonita, não desejava ser bonita, não mais, nem sequer poderia ser bonita. Era uma maneira de continuar ali, diante do espelho, se segurando a alguma coisa, insistindo silenciosamente na existência.

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