quarta-feira, 27 de outubro de 2010

cravatte nere

“what’s bred in the bone will not out in the flesh”.
(robertson davies)


há dois em cena e o convite sobre o criado-mudo. ninguém fala. ninguém insiste. num canto uma televisão ligada que ninguém assiste. diante do espelho ele arruma a gravata. o outro, secando o corpo, apenas observa atento. nas costas molhadas uma marca. para além da gravata, no colarinho, uma pequena marca. no chão uma taça de champagne quebrada (eles sabem o que é champagne, acredite). não se vê, cheia ou vazia, em canto algum a garrafa. apenas uma taça…. quebrada. a caligrafia em dourado no convite e o fundo escuro do quarto. quase uma cena em sépia como uma fotografia velha. um não irrompe no silêncio, bem lento, num murmúrio sonolento, na melancolia de quem não precisa. o perfume. há a verdade feita álbum de tias velhas desbotado. seco, o corpo se abandona na cama. acende um cigarro. quando? de novo? talvez? eu sei. diálogos rápidos, mecânicos, batidos à máquina. este pede pelo telefone um gazpacho español… frio como a vida, mas ainda assim, sempre se pode comer, o gazpacho e a vida. nenhum osso quebrado. alguns pesadelos. de quem é marca em vermelho? o que se oculta num labirinto de jardim? encontrar o enigma já é encontrar alguma coisa. pronto: nó perfeito, calças alinhadas, cabelo posto, óculos, sapatos, a luva na mão que fechou a porta. um sorriso numa cor impossível (ainda estamos em preto e branco, como a ilusão de um sonho que engana). nas sedas, o corpo, nu, em febre, se desenrola. no pulso a chave, dentro do corpo a dor. três goles de água. o três é um número bonito, não achas? O espelho duplica o mundo. sozinho consigo,conversa sem precisar de palavras. matemática impossível. o corpo treme. quer outro banho? quer outro corpo? não tem desejos. o delírio nunca vem, os fantasmas nunca batem à porta. a memória falha. o corpo adoece de si. o convite ainda sobre o criado-mudo, a taça quebrada… sem flores na cena. ele não gosta de flores. nu vai até a janela, arrastando os passos no trigésimo andar. o horizonte néon. céu escuro. sem desejos ou estrelas. candente. qual seu preço? brincando de forca: palavra, quatro letras, que eu não tenho. no espelho do banheiro, um recado. que língua é esta? sei do gosto, sei da cor, do toque, mas não sei o sentido. blackout. e tudo é preto. o pé chuta a garrafa, impossível de ver, sente o líquido escorrendo, molhando os pés, o tapete, umedecendo as lembrança. sem esperanças, impossível o destino. abandonado se esquece na cama, nu ainda.

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