quarta-feira, 26 de maio de 2010

Dois copos de uísque e um cigarro

(ou bem à Tennessee Williams)

É preciso não sobreviver a lei da selva, o cowboy de calça justa e coxas salientes me repetia dizendo que o sistema era sempre o mesmo, os grandes sempre devoravam os pequenos. Enquanto eu insistia que tudo era questão de força e inteligência, ele brincava com seu chapéu ou retirava mais um cigarro e começava a tragar violentamente. Não era a primeira vez que isto me acontecia, mas eu estava armado, uma taça de champagne pode ser perigosa. O que muito me lembra algo que me aconteceu na América Latina, Brasil ou Argentina, não sei bem o lugar, não lembro o nome da bebida, mas era algo local, tropical e forte. Acabou com um garoto banhado nela. Ele era eloqüente demais para ser um simples cowboy, além do mais estava hospedado em Nova Iorque, no Hotel Elysée. Os campos elísios talvez dissessem alguma coisa, ainda mais num bar de hotel. Tocava Madonna ao fundo, ele apenas ria e dizia Hard Candy – 1954. Por onde você esteve nos últimos tempos? Ele insistia. Isto não é importante. Mas é que vejo sol em sua pele, trópicos? Pergunto… eu acabo de voltar de Key West e San Francisco, mas estava interessado em Londres. Ele falava muito, demais, com um sotaque que eu não sabia dizer de onde, perdia-me no que ele falava. Nisto chega um garoto e lhe entrega uma encomenda, abre, espio o título da coisa. Getting gay in New York. Ele então olhou para mim, sorriu, eu sou gay, mas não me disfarço de mulher. Eu sorri, não podia dizer muita coisa para ele, tinha muita luz, eu estava altamente fotofóbico. Precisava de espaço, de um pouco de ar. Ele estava incomodado, parecia, não sabia o que fazer com as mãos, repetia sem parar que as coisas não poderiam pegar ou algo que eu não entendia, alguns momentos ele falava como se falasse para si mesmo. Sabe, mulheres, travestis ou transexuais estão fora do meu entendimento, sabe. Ele insistia em querer me tocar. Posso te chamar de Candy Darling, já que não sei seu nome. Fiz um muxoxo, disse-lhe que tinha enxaqueca, que precisava pôr os óculos, mas que não precisava se incomodar, disse isto e saquei da bolsa meu Valentino que estava enrolado em um lenço de seda. Afinal… por mais estranho que fosse, com aquele jeito cavalo-feno-suor de ser, estava sendo boa companhia. Eu bebericava um champagne estranho, ele tomava uísque, tão cowboy quanto ele. Eu comia frutas cristalizadas, ele qualquer desgraça que eu sequer sabia dizer o que era, apenas que era carne. Ele se constrangia com minha maneira contida, nos seus gestos amplos. Até que me ofereceu uma troca, disse-me para experimentar sua bebida. Para mim era impossível, uísque assim. Queria que eu desse apenas um gole da bebida. Era impossível para mim beber aquilo, beber do copo de um estranho. Pediu-me então um gole da minha bebida, eu, que não podendo beber a dele, cedi. Pegou minha taça e virou-a e bebeu tudo de um gole, terminando por dizer apenas: “água, isso é água”. Não pude conter o riso, ele acabara com todo o encanto que o champagne tinha para mim em trinta segundos, até hoje quando volto a bebericar minhas taças de Crystal, não separo sua imagem de homem bruto com um largo sorriso num belo corpo. Ele disse-me para olhar as mulheres que passavam, enquanto dizia, penso em fazer uma pilhéria com o sexo feminino, aliás, eu tenho um fraco pelas mulheres, sim, você não acredita? Eu tenho um fraco sim, mas não sexualmente, se é o que você está pensando, mas como pessoas. As mulheres sempre ficam intrigadas com a graça e a classe do homem gay. Você é sempre tão difícil assim? Apenas sorri novamente e apontei a ponta do passaporte vinho aparecendo na bolsa. Ele fez um muxoxo. Estou tentando ficar um pouco mais específico contigo, entende? Você também precisa entrar na trama da peça, entende? O seu mundo da fantasia é tão superior assim ao mundo real? Eu sorri para ele, querido, um de nós dois sempre perderá no fim. Ele abriu os dois olhos grandes de lobo e respondeu me mandando ler Tchecov, um mundo triste, perdido, vivendo para um futuro que viria depois de sua morte, porque um dia as coisas seriam melhores, muito melhores, só que as coisas não foram melhores, ficaram ainda mais reacionárias. As coisas se tornaram uma burocracia, uma burocracia monolítica. Eu simplesmente não sabia onde ele queria chegar com isso, mas que era divertido um cowboy, de barba mal-feita com seus um metro e noventa de boa forma, citando um autor russo, ah, isso era altamente intrigante. Você conhece Gogol, me perguntou? Tive de dizer que não, sorrindo, ele sorriu e escreveu num pedaço de papel me mandando procurar algo também de Nokolai Gogol, mas me pedindo para evitar Pirandello, dado que ele não se prestava a tradução e poucas coisas dele podiam ser lidas. Eu não consigo, disse-me, talvez você, com todo seu camp, consiga. Ele era charmoso, isso era inegável, mas relógios são sempre implacáveis. Fiz um sinal a Kilroy, que assentiu com cabeça, meu táxi já estava me aguardando. Pedi desculpas a ele, agradeci pela companhia. Ele me olhava atônito, quando me perguntou se não ganharia nem sequer um beijo. Eu disse que isto era fácil de resolver. Chamei o garçom, paguei minha bebida pedindo para assim que eu saísse entregasse uma garrafa de champagne ao cowboy, com um bilhete manuscrito que dizia, “talvez aqui, além da água, encontre um beijo meu, se me descobrir devagar numa taça”. Agradeci pela companhia, disse-lhe que apenas esperava as horas passarem para meu vôo, bem como meu táxi já me esperava, era meu último dia em Nova Iorque, não haveria muito o que fazer, dei-lhe meu endereço, sorriu num sorriso torto, prometeu que escreveria, bem como acabou escrevendo. Na despedida, dei-lhe um beijo no rosto, de dentro do táxi apenas acenei e gritei до свидания. Até hoje eu não sei o que ele pensa dos champagnes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário