sábado, 22 de dezembro de 2012


você aprendeu com hollywood e é isto que se espera: que em um dia nublado, em que tudo parece estar dando errado, daqueles em que se acorda atrasado, que se derrama café na camisa aumentando o atraso, em que se arrebenta a alça da mochila, em que as sacolas rasgam... então você vai a biblioteca e sai carregado de livros, neste instante você esbarra em alguém e todos os livros despencam, o fulano em questão vai te ajudar a catar as coisas, olhos nos olhos, respiração, pulso descompassado e, voilà, príncipe encantado. mas a vida não é um cineminha água com açúcar e se a nobreza suposta te ver na saída da biblioteca vai de olhar de esguelho ou quem sabe até chegar na voadora. delicadezas da pós-modernidade. e não gosto da ideia de ter de caçar alguém, como se estivesse pela savana cercado de leões... ou morrendo de fome (esta fome sexual crescente a olhos vistos no fundo da retina das pessoas).  caçar... a ideia de que se alimenta do outro, mais do que se desfruta.  não se bebe mais do brilho dos olhos de alguém como se bebe um vinho raro, mas se engole, aos pedaços, se exige aos pedaços carcomidos estas migalhas de carinho agressivas que pesam no estômago, indigestas.  eu talvez, neste meu pequeno filme sem trilha sonora e com uma exigência de fotografia e cena, encontrar alguém,  no sorriso de alguém, um pouco mais de poesia... naquela dobra de esquina, um alguém que antes de tudo esteja disposto, bem alimentado, sem fúria, sem fome, apenas à espera... talvez um cinema (porque agora, aqui, o cinema se impõe como tema), entre duas pipocas e um gole de refrigerante, aquele roçar tímido de mãos, uma risada um pouco mais alta e um shhhhhh! desconhecido, uma caminhada na beira-mar de mãos dadas sob o céu tingido de vermelho. é tão difícil alguém que goste de pequenas delicadezas e queira vivê-las? aquele singelo desejo da surpresa quando em um dia de chuva este alguém bate a sua porta encharcado as 3 da manhã com a desculpa de que queria vê-lo porque havia saudade esmagando no silêncio dos cômodos?  e depois, enquanto você o despacha para uma ducha quente, para não resfriar e prepara um chá com algo doce para comer, e abraçados, deitados...  ou ainda,  ele vê televisão deitado no seu colo enquanto você lê um livro que precisa terminar com algum urgência (terminar de ler algo com alguma urgência é sempre o meu caso), então, sem mais de desejo, sem mais de preemência, adormecem e dormem para a poesia ainda maior: acordar juntos.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012


alguns poemas
são como pedidos de socorro
presos numa garrafa
e jogados ao mar.
sempre em busca de quem encontrá-lo
e que possa lê-los...
talvez só isto baste
para salvar um náufrago
para fazê-lo fantasma ou estrela
ainda que sem nome e sem rosto.

um náufrago é aquele que se afoga com as palavras
soluçando uma dor enviesada
olhando de lado
com trejeito nas mãos,
nunca um poeta,
no máximo alguém que escreve cartas,
mas cartas que não são cartas de amor
cartas como sopa de letrinhas
para que alguém o invente
e o encontre.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

1/4 de século

é engraçado pensar nas linhas das mãos, abrir um álbum de fotos e perseguir alguma memória. perceber a falta e controle, aquilo que sempre nos escapa, que nos faz tropeçar. nada dos meus planos feitos e pensados me traria aqui onde estou hoje, foram aquelas escolhas diante de uma guilhotina, entre um sim e um não, no atropelo dos fatos. antes dos dez anos o que eu seria? arquiteto talvez, pelas casinhas que construía no fundo do quintal? é engraçado tentar ver onde houve a virada, onde poderia ter surgido o germem da dúvida. poderia ter sido químico, mas talvez o erro quando fui preparar o pó de mico do kit do meu pequeno alquimista tenha mudado tudo... mas ainda é terrível lembrar que a dor do não poder mais, de um sonho que sai de cena é sempre maior... eu poderia ter simplesmente aceitado o papel de principezinho e virado um bailarino, mas o corpo falha, não aguenta... assim existe minha cicatriz do joelho esquerdo. poderia ter virado costureirinha, mas a impaciência entre hipster e o fashionista me agoniaram quando eu apenas queria pregar botões. e girei entre os livros... encontrei os fantamas... vomitei algumas palavras e despenquei no divã. e nas minhas próprias sombras hoje me perco, sozinho... deixando flaubert de lado, balzac batendo as portas. e embora repita que "ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de baudelaire", nunca mergulhei nas flores do mal, jamais naveguei em um barco bebado ou vi a fumaça mística de um cachimbo. nem rimbaud, sequer baudelaire... mas resiste a solidão de casa sem móveis de bovary, doendo... sentido as batidas do coração como passos num corredor longo e sem fim e de paredes nuas. talvez eu não possa ir eu mesmo comprar as minhas flores. nao tenho os amores loucos de verlaine. não tenho os beijos de meu herói retirado de um romance de jane austen. dói, mas o diálogo não vem: “Você poderia ter conversado comigo naquele jantar”, diz ela, já depois de estarem noivos. “Um homem menos apaixonado poderia”, responde nosso adorado mr. darcy. nem daenerys a mais corajosa das princesas; nem a alice a garota das maravilhas ; sequer liesel meminger a ladra mais honesta que já existiu. que me resta e que sombra reside no fundo do espelho? talvez não tenhamos, agora, nem mesmo paris. mas resta o tempo, o peso, a tentativa, o retorno. eu sei que é escusado sonhar que se bebe; quando a sede aperta, é preciso acordar para beber. mas os pés falham, tudo começa a não se encaixar mais... e se resiste, sofre-se, esteticamente, três lágrimas entre uma taça e outra. mas o vazio, a casa, as cortinas... o cansaço dos dias, o longo das noites... a interrogação como angústia, a insônia como afeto... que fazer ainda, se não ainda existir por aqui até que se baste.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Autobiografia


Não gosto de salada russa, de roleta russa, nem de montanha russa. Pra não parecer implicância, gosto, e muito, de ballet russo. Já disseram que eu tinha alguma classe, excessiva e irritante. Já fiz esgrima e equitação. Pintei, desenhei, costurei. Ainda não esculpi. Não tenho a voz do Sinatra, mas também sou pró-Mia Farrow contra tanto Woody Allen. Não tenho os olhos do Mel Gibson, nem os cabelos do Richard Gere, nem o abdômen do Brad Pitt, o charme do Tom Cruise, sequer a poesia de Chico ou a conta do Carlos Slim. Há quem diga que tenho um bocão quase à Jolie. Não sou evolucionista e, ainda que não seja pessimista, sou nada positivista. Nunca matei um mico-leão-dourado, talvez porque nunca tenha visto. Nunca derramei petróleo no oceano. Não tenho o bigode do Groucho, mas algumas vezes me visto quase como a Carmencita. Tento não me atrasar para os compromissos, mas se for pela manhã é quase que inevitável. Gosto de maquiagem e perfume francês. Tenho minha galeria de glamour, de Dior a Chanel, de Givenchy a Valentino. Creio no charme dos saltos-alto. E com toda minha megalomania: já fui na Napoleão e fiz minha Bona-party.  Tenho a irritante tendência a irritar os outros e a insistir e provar que “eu estava certo!”. Não me dou muito bem com post-it. Não acredito em Deus, ao menos isto não é relevante e não me afeta. Confesso que não me confesso há algum tempo, mas para isso sempre há as sessões de análise. Já tentei amar ao próximo, ao modelo católico, mas hoje depois de descobrir que “amar é dar o que não se tem pra quem não quer”, as coisas ficaram confusas.  Obviamente, sou gay. Gosto de ler, mas fiz disto meu trabalho, então...  não sei nadar, morreria no Titanic, mas como sei desenhar poderia ficar com o papel de Jack. Sem tendências românticas, não sou marxista, apesar de flertar com a psicanálise.  Gosto de poesia e cinema. E de mulheres esguias (não há como não amar Audrey Hepburn). Já namorei e acabei namoros. Já descobri que não é o coração que dói, mas o ego, o ego latejante na rejeição.  Tudo no fundo se resume sempre a dor de cotovelo de alguma forma. Serei doutor, mas não serei médico. Reclamo além da conta, mas sempre tem gente que vem pedir minha opinião sobre alguma coisa, mesmo aqueles que insistentemente não creem no que digo. E eu acho e "acho" muito, com aquele ranço pseudo-intelectual. Eu respondo e-mails, mas prefiro escrever cartas. Tenho uma caixa-postal pra isso. Academia nunca foi meu forte, mas eu sei ficar nas pontas, há ainda a tendência alcoolizada de abrir espacates (se você nunca viu é porque nunca bebeu comigo). E o complexo cirque de Soleil sempre me fazendo ter um roxo ou quebrar alguma coisa, depois de me pendurar em algum lugar. Síndrome de escalada, o que explica alguns de meus gostos mais pessoais. Mas sem alpinismo social. E gosto dos livros, mas nunca sei o que ler diante de uma crise de insônia. Odeio-os quando tenho enxaqueca, mas odeio o mundo e a vida nestes dias. Gosto de andar, de cafés finos, chocolate suíço e belga, de caviar e champagne... foie gras, só em boa companhia. De pôr-do-sol e noite fria. De chorar escondido no banho. Mas só banho quente, com direito a vapor bancando o fog londrino. E tendo a ser só, muito só. E me afasto e me exilo. Mas sempre volto.  Nunca respondo diretamente ao "tudo bem?", porque nunca sei o que isto realmente quer dizer, mas fica como chave de ouro minha resposta de que "estou vivo", "ainda vivo". E, sobretudo, acredito no dístico "aguarde e confie". E ficamos com isso, aguardando e confiando... sem saber direito o quê ou como, mas ainda aqui.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

mais uma vez estou só. quem me encontrou entre os lençóis no final de semana? minha vida é como o tabuleiro aberto de um crime. quantas peças tens? quais as regras para me movimentar?  com que talheres comer e como me portar? abdiquei de minha garrafa de absinto. saí da casa de amigos e andei na madrugada deserta, noturna e sem sombras. sem crimes ou mistério. andei até suar para expurgar a dúvida. o que percebi não tem preço. percebo e avalio em planos geométricos os gestos e os comentários. acho que é hora de me pôr à escuta e esperar, esperar que alguém sinta minha falta (que nunca é sentida) e fazer o que eu sei fazer: virar as páginas e ler e ler e ler ainda e um pouco mais. pego o celular e passo em revista os nomes. crio uma cena imaginária: a que poderia, em caso de crise agora, pedir ajuda? quem me atenderia? acho que ninguém, no estágio atual. tantos nomes estranhos, tantas palavras indevidas. não te enviarei mais poemas, é hora de valorizar os caracteres economizando na letra, nas palavras enviadas. é preciso não gastar a literatura com quem não entende. é preciso não perder os sentidos no meio do labirinto. a maquiagem desaba aos poucos do rosto. não bebi. tenho duas opções, como andar para frente e voltar para trás, beber do chá ou do refrigerante. o poeta português ao longe ainda mais sinais de fumaça, quase nunca, mas nos últimos dias um ou outro verso aparecem e se recolhem no fundo de minhas retinas doloridas. eu optei por não, por um talvez. acabei trancado num carro por conta das palavras dele e sozinho na rua, com meus livros nos braços. é importante saber cuidar dos livros. diferente das pessoas eles estão ali, sempre ao alcance da mão, como fuga, como esperteza pensada, como crime mal-passado. a amiga não tão distante, ainda que um istmo de oceano nos separe não diz mais nada. o garoto de são paulo que enterrou minha carta no parque ibirapuera.  o menino duas quadras a frente que me engana e bule com outro amigo. aquele outro que, nojento, me persegue. o coelhinho dos meus delírios em febre, perdido... os fantasmas equidistantes... o garoto que é burro o suficiente para tentar me enganar com palavras esculpidas em ciclamato. e eu, acidulantemente idiota, deixo ir e girar seus botões. quantas pessoas apenas passam pela minha vida piores que estes que esbarram comigo nas calçadas e me olham de lado, mas deixam seus nomes sem função em tudo. aqui, em algum lugar, uma porta bate, me assusto. e nos sobressalto perco a palavra. queria tomar banho, mas minha pele coça. há tanto tempo não sei o que fazer.... e me sinto só. não sei onde encontrar. foi hollywood quem me estragou... tanto cinema! o velho sonho de, na saída da biblioteca, esbarrar com alguém, livros despencam, o mundo despenca, olhos nos olhos, mão na mão, um acaso impossível e improvável num universo de cutucos e mentiras sem substância. eu me arrisquei, mas não mais. deixa estar, eu insisto. por mais que eu creia nisso, isto talvez não seja para mim. a casinha, a cerca branca, o balanço no jardim.... meu lugar é o parque abandonado, o tubo, o corte na língua, o passo de ballet que não se sustenta, lesão no joelho. olho enviesado. escrita errática. queria poder confiar um pouco além, naquele passo em falso, na sustentação do cadafalso, mas sei que ninguém lê, a não ser eu. o que se desdobra em mim atravessa peles tão estranhas e fingidas e maquiadas quanto a minha. entre o possível chupão no pescoço (interpretação diversa e alheia) e o real da  alergia solitária... é isto, pura mancha. uma alteridade real, corpo com corpo, mão desluvadas e sem perigo, não se aventura aqui há tanto tempo. é toda tua dúvida que vomita em mim. e eu riu ainda mais laconicamente: tu que não acreditas tens o que eu acredito e não tenho. só posso querer ou invejar. mas não mais, não quero e não posso nem isso. não me permito. vou sumir devagar, já que não faço falta, se qualquer um pode ocupar o lugar. qualquer um. tão dificil. creio que nada nos torna mais especiais do que a entrega do amor, mas isto é crença, tão próxima do era uma vez quanto dos horóscopos. quem me encontrará minhas páginas amanhã,quando nem meu corpo restar só, entre os lençóis? quando minha voz rouca não tiver mais o corpo viadinho para contradizer... eu sou o aval deste delírio para ti, a verdade que não possuis e que rombas. ris de minha angústia e de minha melancolia como se fosse apenas um tira-gosto de férias, como se eu não tivesse pratos para lavas, como se não subisse e descesse escadas. só porque não aperto os mesmos botões que você e cravo os dentes no primeiro ser vivente e respirante que me lance algum olhar carregado. nem cigana dissimulada, nem musa iluminada. nem mesmo vidente. apenas isto, leitor de quartos escuros. sobrevivente.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

com o psicanalista bêbado
toda catarse é um tiro
toda lágrima, um suicídio.
este excesso de mim
que tropeça na falta de ti.
estou cansado, doente e bêbado. há mais álibi que isso? mas recuso o crime e a desculpa. queria um abraço, não o tenho. tive frio vindo pra casa. emprestei meu cardigan a uma amiga, eu faço destas coisas, tiro de mim... gosto do dom,da dimensão da entrega. eu sempre me dou demais. eu farto de mim o outro até a dimensão do enjoou. não quero, não sei mais... sou o viadinho que dança ballet e pedantemente brinca de literatura. o que escrevo ninguém entende. me escondo  no fundo de um copo de gim. quero um beijo. o teu corpo quente, o teu nome friccionado contra o meu. a casa. aquilo que não se pede porque nao há como. pura insistência. demando presença. você corre e esperneia. eu aquiesço, cansado e não bêbado. fica a palavra. as lágrimas no banho. a maquiagem que não usei. os saltos que não calcei. fica isso, como eu fico só no escuro do quarto rolando entre os lençóis. e fico, espero... sempre posto à espera. na violencia do teu gesto eu esqueço de mim, me descubro feio e impossível de ser amado. eu queria tanto... eu sinto muito por isso. eu ainda olho minhas fotos e vejo minha vida ando de ré. eu deveria estar no horizonte, mas nem sou capaz de andar no escuro do quarto. e tenho fome. fome. fome. o espelho me denuncia. eu respiro. e respirar dói tanto quanto viver. me sinto só. eu ainda sonho e odeio isso. dizem que estou sozinho porque quero, mas não é verdade, odeio estar sozinho. cansei de dizer demais, cansei de me expor demais, de ser sempre quem diz e quem pega pela mão. quem acena de longe. que não sabe mais. quem não recebe o pedido, quem vai pra casa sozinho embaixo da chuva. quem renuncia ao caminho... mas eu deixo, quero ser escolhido porque sou eu, não porque sou isto ou aquilo, mas porque este é meu lugar, porque isto faz sentido no sem sentido. eu nem sequer queria escrever isto, mas estou aqui escrevendo. obrigando-me a expurgar minha falta num excesso. preciso me calar. sumir. morrer.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

eu te imagino como cavaleiro medieval,com sua armadura brilhante, espada na mão e avançando sobre as colunas, invadindo meu universo de livros, corredores escuros cheirando a papel guardado, saltando sobre as citações, esquecendo as normas e as armadilhas da sintaxe... um mundo de cortinas cerradas e muitas páginas...
(...eu poderia ter sido a tua matéria preferida na escola...)
"se temos medo, fugimos. é nosso instinto. a adrenalina percorre o nosso corpo, o coração despende mais potência, altera o pulso e fugimos, por medo. ou melhor, nosso corpo foge. fugimos procurando um lugar seguro, tão seguro quanto possível, tão seguro quanto um abraço" (Brèal, 2012).

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

dos dramas não-poéticos que tenho de enfrentar: não posso voar de um quinto andar
batendo asas à ana c. moro no térreo e tenho grades nas janelas
nao sei fazer polenta e quase nunca vou ao circo, mas tenho meus reveses 
bem aglaja veteranyi
não sei nadar. não posso mergulhar em algum lago de zurique.quiçá na barra da lagoa?
reinaldo arenas é quem me brinda. on the rocks. javier bardem não tentará um oscar por mim.
60 pastilhas de secobarbitol
escondidas nas páginas de andrés caicedo.
um tiro de revólver na têmpora direita e camilo castelo branco me imortaliza.
Eu trouxe do Porto cem mil reis que me mandaram entregar a esse senhor e ainda não o tinha feito por esquecimento. Desempenho-me agora da minha missão
quiçá morrer em paris.. sempre em paris
como sadeq hedayat
bricando de gérard de nerval.
torquato neto é quem me dá o gás
me afoga nas palavras vomitadas e me enforca
sufoca....
um fantasma a foster wallace.
no meu banquete alguém recita florbela espanca
que tem cido meu vicio...
josé maría arguedas sussurra uma orelha não-literária.
me contento com pizarnik... que me dá tapas na cara e esperneia.
ela não quer dar.
na redoma de vidro não respiro, sylvia plath é quem me prende e anne sexton ri da minha cara.
e me resta chorar no banho.
impotente.

me abraça e me protege
enquanto eu durmo contigo?
e poderei sonhar, nos tropeços dos pesadelos,
com o beijo nos olhos
vagueando no éter

e se eu despencar do céu?
você me segura um pouco mais...
e me aperta mais forte...

e cochicha no meu ouvindo:
estou aqui, ainda estou aqui,
estou contigo...
fica comigo?
põe mais um risquinho para este abraço que me deves
naquele cantinho úmido da parede....
e em breve me darás
pagando com carinho estas horas quietas e silenciosas

nem que seja em Paris
e você esteja pegando um suíço da Bel Ami...

vou querer o abraço
o quente de ti
para esconder o vulnerável de mim

e no beijo
aquelas palavras que não podem ser ditas
porque ainda não existem
boa noite...
uma aliança de papel e as palavras que não podes dizer, já que tu não existes. uma taça de acrílico. isto apenas não diz nada. meus pés coçam. abro o botão. sabes escrever meu nome com ''s''. momentos em que vou a ducha e choro para tirar a maquiagem. resta me o silêncio. o cheiro do jasmim invadindo o quarto e me causando mais alergias. durmo no chão, sem roupa. você viu meu corpo nu, mas teve sono. sigo assim, no escuro e de leve, às cegas...
queria só um abraço que suspendesse o tempo, um beijo sem verdades. um espelho fosco e divinatórios que devorasse todo e qualquer destino.
não sei fazer poesia.
nao sigo mais e me calo.
boa noite...

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

acumulo terra debaixo das unhas que deixei de roer. a janela aberta deixa entrar um vento frio que me corta os pulmões, mas não fecho. tenho coragem. não tenho mais. queria te dizer que te espero, para além das coxas abertas, de braços ao largo. o que valeria mais? lustro os sapatos. preciso limpar a casa, dobrar a roupa, deveria esperar mais um pouco. não espero mais. bebo minha xícara de chá. bebo minha taça de vinho. minha dose de vodka. um shot de tequila. on fire. me jogo. on water.  desejo em off. close-up.  o vermelho abrindo flores na piscina. em sépia o sangue é apenas um líquido grosso e quente. escrevo uma carta. esqueço na gaveta. vem e me abraça mais forte. um pouco mais. eu te amaria ainda até o tédio.  insistiria no teu cheiro, mas você não me responde e eu me recolho. não devo insistir mais por hoje. o corte na coxa aumenta. toda uma vida resumida num postal mentiroso. você não me lê. só eu me leio. e desentendido calço as luvas, escrevo um bilhete rápido na saída do cinema, para entregar a algum desconhecido. nunca nos veremos certamente. nem mesmo com a sorte de meus dados viciados.
Para a melhor parte de um futuro romance
lembrar!
Anônimo era um garoto gay.
BEIJOS.
boa noite...

(posso te encontrar
em alguma esquina excusa
de algum sonho escuro
de uma vida em sépia?)

sábado, 18 de agosto de 2012

algumas pessoas você tem de engolir
outras tantas você não digere
então passa logo o activia pra cá
pra acelerar o processo
e cagar elas pra fora da vida
dado que em merda se dá descarga

nota

quisera ter coragem. aquela foto que teus olhos tocaram. quisera deixa as coisas assim livres desta auto-ajuda barata. esta escrita ruim que insiste. estas combinações inusitadas que no fundo não servem pra nada. todo um postal mentiroso. nunca chegarei a sylvia plath. mas ainda resta o voo de um quinto andar. mas o que fazer se moro no térreo? você vem, me visita, te ofereço café e tu recusas. deita na minha cama, imóvel... eu faço o que não devia. dormimos. acordamos atrasados, tu precisa ir, tu quer um banho. toalha azul à esquerda, a mais grossa. eu me abandono nos lençois. e tudo isto é mentira. meu amigo sabe do menino que gosto e fica com ele. não entendo. e ainda me avisa. quer dizer que é mais do que eu, é isto? quanto tempo faz desde a última vez que me senti acolhido verdadeiramente? não consigo ouvir beatles, não hoje. não agora. eu dormi no sofá. eu pedi socorro e não fui atendido. gritei, mas a voz que saiu não era a minha e não fui ouvido.  a tristeza nunca vai embora, não é mesmo van gogh? desculpem-me, mas a vida esta se tornando insuportável... minha trilha sonora tem dalida, desde aquele outro garoto. eu escrevo cartas... penso no meu bilhete suícida, mas... já tentei barbituricos e uísque, não deu muito certo. não fui dormir, talvez tenha sido este o erro, fui tomar banho. é desculpem por todo este sangue, por estas palavras que não valem nada.
aqui:
vendo a vida
passando
da calçada.

num descontrole
até aqui
podes ser
atropelado.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

para o menino que vê estrelas

não toca meu corpo, nem mesmo com o peso de teu olhar. procuro o celular, perdido entre os lençois, e esperando algum sinal desvio a resposta. talvez seja hora de aguenta o silêncio, suportando esta lasceração. meu corpo pede o ballet um pouco mais, mas o adágio não vem. a mão suspensa chama o gesto que não lhe alcança . acreditando nos infinitos, erro no infinitivo. meu desejo é simples. tua presença aqui ainda. talvez um abraço. talvez, passante baudelairiano, sua sombra apenas fique no "aquele que eu amaria". sou pessimista por cuidado e sobrevivência. sem cinismo. e me sinto como verlaine observando rimbaud escrevendo. toda uma inocência em tomada selvagem. e me restam os soluços graves e violinos suaves. e choro, quando ouço, ofegando, bater a hora. preciso sair da cama, vencer este primeiro muro de berlim, derrubando isto que apenas fica na gravidade e faz o corpo pender, aprisionando ao travesseiro a mente sem deixá-la dormir. talvez tudo volte. mas nada volta.  talvez você saiba, mas eu sei que você sabe... então não há nada a fazer. entre o dito e o não-dito, quanto vale o escrito? fui eu quem te apresentou os versos de adília lopes ("...hoje quando penso no rapaz penso em estrelas e quando penso em estrelas penso no rapaz..."). mas a mecânica dos dias segue: é preciso manter o pulso, as pernas torneadas... a sombre de desejo que inexiste em mim e existe presa entre os pêlos imposta por este teu olho faminto (que já não me vê). e há a louca para ser limpa, camões na estante me faz repetir em versos desconexos a cadência assombrosa. ("se dizem, fero Amor, que a sede tua  nem com lágrimas tristes se mitiga, é porque queres, áspero e tirano, tuas aras banhar em sangue humano"). e sigo...  entre cimitarras cibilantes. há o café,o quente conforto... o peito do pé esfolado (ainda). tu poderia almoçar comigo? sei destas coisas de haute cuisine e que poderias gostas.  e te digo para ler um livro e me encontrar nele (mas até eu mesmo tento te ler para encontrar o resto de ti ali, na tua caligrafia). dialogamos em silêncio, no balanço do ônibus, esperando o ponto final. quem vai descer primeiro? fico nu na cama. chuto tudo pra longe. esqueço meu nome e não assino mais nada (preciso abandonar os estudos de hegel).  e tenho tantos livros pra ler, esta minha londres de páginas amareladas, esta paris devotada em papéis esparsos. talvez eu esqueça... talvez não.
 
acho que peco no excesso. nesta maré baixa em que não se consegue nem se afogar com esta água batendo nos tornozelos. eu erro na sintaxe e estou mais só do que o habitual. você vem e me olha, de longe, de perto, respira e some. permaneço, no erro. e insisto mais uma vez e tudo pesa que até mesmo o sono exaure suas verdades e não penso mais. ou por outro lado apenas penso. minha cabeça pesa, não aguento esta bagunça que se acumula na beirada da cama (como lágrimas não choradas entupindo o fundo do olho). não queria, mas venci a aposta e nem precisei de cartas na manga. tudo tão simples. e o que tu dizias mesmo? eu voltei a escrever, por esse atropelamento, por esta falta de trilhos. e o sol não abre como em todas as manhãs, mas também não chove, como em todas as tardes. e  nesta cama deixado ao chão, o rés de mim respira. e sou pele.  e despenco as cartas da manga e envio postais como quem tenta salvar um afogado atirando uma boia, mas sou eu que engulo água e vejo a vida fazendo água, que não consigo segurar por entre os dedos.  e abro mais uma vez a torneira para chorar, mas a água escoa ralo abaixo, como tudo, e nem posso abrir as veias, não tenho motivos. e tudo insiste, como o corpo resiste.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

PROMETO

dividir o último pedaço de pizza.
te abraçar quando estiver triste.

domingo, 24 de junho de 2012


eu teria te esperado
mas você realmente me deixou esperando no altar
o terno branco já estava amarelando no meu corpo

quinta-feira, 26 de abril de 2012

branca de neve digere a maçã
(larica de pó branco)
cinderela usa all star
bela adormecida toma rophinol pra dormir
a bela passeia com a fera na coleira
dominatrix
o espelho é uma webcam
a bruxa aplica botox
o príncipe é transsex
pocahontas partilhando um baseado
o caçador tem uma arma pequena que há muito tempo não dispara
fadas madrinhas com cartão de credito
zoofilia na corte
canibalismo na plebe
cartomancia no clero
histórias de ninar substituídas por gemidos comerciais de uma transa rápida
(non sense)
gozo de ectazy
el dorado é um beco sujo mal-iluminado por lsd
contos de fadas pós-pós-modernos
morde devagar meu lábio enquanto com a mão espedaça meu coração de cristal
minha maquiagem borrada não vale um poema
a verdade entope o ralo do olho
nao choro enquanto deliro
durmo de calça jeans
(apesar de que um garoto me ensinou que toda calça jeans tem um zíper)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

estou aqui, lençol de seda rosa, os pinceis na bolsa, mala aberta. decidindo. meu pescoço dói. vinda rápida à fazenda. sou sempre aquele que escuta, e isto apenas. chovia há quinze minutos, não chove mais. cansei de ser aquele a quem enviam os emissários para pedir ajuda. recupero uma imagem: pitonisa delirante, virgem solitária de delfos...
tentei recuperar a máquina de costurar de vovó, mas algumas peças estão enferrujadas. o que fazer com isto. preciso fazer algumas escolhas... correr... andar ainda mais. não aguento mais. este silêncio eterno. esta falta eterna do meu lugar. este desencontro de mim em mim. este sono que não vem. as dores que encontro a cada passo. eu sinto como se meu corpo estivesse falhando devagar, mas acumulando nas dobras e dúvidas, nas articulações interrogantes, este tempo de melancolia, que pesa, me arrasta, me força, como se correntes prendessem... talvez o mundo seja hostil. talvez eu não saiba mais nada. eu só queria me esquecer um pouco mais de mim.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

em termos de relacionamento, sinto como se eu não fosse uma boa carta, aquela que dá sorte e faz crer numa boa jogada. desenvolver esta minha metáfora me leva a termos mais sutis: não sou uma carta na mão, não posso e não quero ser uma carta na manga, não sou uma carta na mesa. não valho um coringa pra um jogo sujo, não ocupo espaços vazios, não emendo o jogo. não sou uma carta impossibilitada no morto. para os mais requintados não contribuo para um royal flush; para os menos elegantes não faço vezes de gato e comigo nunca dá pra pedir truco. afinal, que nasceu valete não se mete a rei, o amor não vale trinca. não sou um ás indomável, nem mesmo uma falsa dama ou um renegado nove de paus. sou, neste jogo, a carta fora do baralho, embora, em tese, qualquer carta pode somar 21.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

21/01

...( é nestas noite em que meu corpo esgotado não consegue desligar, apesar do cansaço, e gostaria de acreditar, mas é um luxo que não consigo suportar. e tudo dói. o silêncio, a solidão, o abandono... sobretundo os pensamentos. na ânsia de quebrar o silêncio, já que não seria de bom tom cortar a madrugada em um grito, não se deve acordar os fantasmas, nem os vizinhos... grito um grito seco e abafado, sem voz e escrevo. apelo a um outro, a alguém que rompa a cadeia, como uma algema, berloque precioso, recoloco o problema do desejo. mas como num delírio num movimento sádico nunca poderei saber se o outro está lá, presente, na ilusão solene de uma resposta ou na conjunção banal de alguns caracteres. e a dor irrompe, engulo o grito, mudo o conceito: solidão > solipsismo - para manter alguma resistência. coloco o ponto final. opto pelo inesperado e pelo silêncio. tão mais penélope de ítaca que helena de tróia. cuidado jasão. cuidado creonte. medeia ainda escreve.)...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Promenade

Não posso dizer de outra maneira, nem mesmo desta maneira. Meu pedido de socorro deixado de lado, os bilhetes que não poderiam ser queimados… sequer existiram. Tu não passas desta sombra que desejo que assombre estas palavras. Olho o dia como quem observa uma janela, aprisionado entre os fones de ouvido e as páginas de um livro. Eu não te ouço, eu não te vejo. Sei que passas apenas. Desvio. É apenas um cruzamento, um sinal amarelo, eu de um lado da rua, você sentado em algum café tomando algo gelado. Faz calor… Grifo em amarelo umas duas linhas de Merleau-Ponty (“Os filósofos, dizem ainda os inéditos, é alguém que perpetuamente começa”). Gosto da frase, mas ainda não consigo avaliar sua dimensão teórica. É preciso saber impor o movimento, um além do ponto final. As unhas roídas que observo são as minhas angustias que me devoram a partir de minha boca que aos poucos se destrói. Oroboro. Quis deixar as garras crescerem, tentei recomeçar um romance… quantas páginas se seguram ainda? O peito sobe e desce, sem arpejos. Há quanto tempo eu venci meu corpo? A linha fina e segura do ballet prescinde do corpo, alonga numa harmonia com o horizonte, integrando a paisagem, fazendo do gesto, do andar, este estar sobre o mundo para atravessá-lo. Talvez por isto todo ballet seja um drama impossível de final feliz. Tanto tempo que não encontro um trevo de quatro-folhas, acho que perdi o vínculo. E se eu voltasse? Mas não sinto nada além deste vazio que me atropela. Meto a mão na mochila, saco um livro, leio rápido, tenho contas pra fazer, tabelas e gráficos para terminar. “será que erramos de novo? rimos menos e menos, ficamos mais tristemente sãos. o que queremos é a ausência dos outros. até mesmo a música clássica favorita foi ouvida demais e todos os bons livros foram lidos” – Bukowski. Eu queria acreditar que acredito, mas na mecânica dos dias minhas apostas foram à zero. Quisera não ter passeado pelos corredores da biblioteca alguma vez,quisera não ouvir o que me insiste pelas tangentes. Meu tiro sempre sai pela culatra e se prende no quadro diante de mim. La bella dona com uma bala presa entre os dentes. Não consigo terminar, não sei escrever. Um delírio me atropela em marcha ré.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Talvez seja hora de recomeçar a escrever, retomar a sintaxe fragmentária e obscura, embora nunca possa saber ao certo se um complemento ficou pendente ou não. É engraçado pensar nos caminhos que as coisas podem tomar, nas trilhas, no aberto, como circulação sanguínea, as palavras tem seu próprio circuito. Pensei em dar algumas diretrizes a este espaço… mas nunca consigo defini-lo em sua própria captura. É, não sou essencialista. Quando penso em desistir, deixar as palavras nos bolsos, nas mangas, ocultas debaixo da língua… os repentes acontecem. Eu gostaria de tentar escrever sobre algo ao certo, uma diretriz menos autobiográfica, menos sobrevivente, menos aterradora… talvez precise de um pouco mais de tempo para pensar para além desta voz egocêntrica que narra silenciosamente as mesmas histórias, sem alterar nem tempo, nem personagens. É a mesma cena congelada pela janela tantas vezes. Quem sabe possa encontrar ao menos as minhas perguntas.
sou o garoto dos teus sonhos
disfarçado de amigo.

estou aqui para além do teu corpo
apenas espera.

eu estou aqui
entre os pesadelos vividos
e sonhos não sonhados.

é no real que tropeço.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Lolita: leitura em curso


(para os amigues de Hermione)

Após minhas breves notas de ontem (via grupo de discussão), resolvi organizar as minhas percepções sobre Lolita, até agora:
O livro é da década de 50, sendo que a história se desenvolve nas primeiras décadas (uma das datas situadas tem como eixo os anos 30), pluridimensional no espaço geográfico: Itália, França, Inglaterra e Estados Unidos. O livro de Nabokov parece ser a tentativa de uma determinação ou uma reapropriação da grande narrativa pequeno burguesa, porém de um lugar em que ainda parece se fazer ouvir toda uma política “moral” do Fin-de-Siècle. Dado importante, porque é na Viena Fin-de-Siècle que Freud está escrevendo e não menos importante o fato de HH ser um parisiense (Nasce em 1910), mas filho de um suíço (haveria que se reportar ainda talvez o eixo de significação que isto pode assumir na narrativa, dado haver um preconceito francófono em relação aos suíços).
O livro se insere numa tradição mais ampla de escrita, pressupõe-se autobiográfico e poderia ser lido tendo na contraface Liasons Dangereuses, de Chordellos de Laclos. Por vezes seria possível um paralelo entre o par Valmont-Merteuil com HH. E muito embora o livro de Laclos tenha o caráter epistolar, a narrativa de HH é intermediada como um relato (importante antever as mudanças na escrita e a oscilação de uma primeira para uma terceira pessoa).
Logo na abertura, o livro traz a insígnia de seu subtítulo: “ou confissão de um viúvo branco”. Desta maneira, ao servir como confissão, relato do eu, também serve para a autodefesa perante o julgamento, lembre-se que HH morre poucos dias antes que isto ocorra, sendo que a confissão é publicada apenas via cláusula testamentaria, para qual o editor, chamado de Jonh Ray, que assume o lugar acadêmico e ao mesmo tempo de selo editorial (uma vez que a escrita autobiográfica supõe no lugar da ficção do eu, a gravitação dos fatos a partir de uma percepção central, que se quer real ou verdadeira). O livro mantém, nas vias de Ray, sua função pedagógica, tal como anunciado logo na abertura de Liasons dangereuses. Por outro lado, é assumida certa fenomenologia dos personagens: “Como relato de caso, Lolita, há de tornar-se, sem dúvida, um clássico dos círculos psiquiátricos. Como obra de arte, transcende seus aspectos expiatórios; e ainda mais importante para nós que sua importância científica, ou seu valor literário, é o impacto ético que o livro há de ter sobre o leitor sério; pois neste pungente estudo pessoal oculta-se uma lição para todos [eis a pedagogia e uma determinação da literatura nos termos de Ray, ph.D]; a criança obstinada, a mãe egoísta, o maníaco ofegante – não são meros personagens vivamente descritos numa história singular: eles nos advertem contra tendências perigosas; eles nos apontam males poderosos” (NABOKOV, 2011, p. 10).
O valor da ficção só se assume caso se coloque à escuta de HH. Dele se demanda, parece que isto emana do leitor (enquanto representante social), uma explicação para os fatos, que os conforme, que os apazigúe. Em sua escrita, testemunhal, HH nos oferece um corpo que demanda, não de um perdão católico, mas de uma aceitação social. Qual seu mal? qual a inevitabilidade de seu desejo?
Por outro lado, a partir do subtítulo, Confissão, pode-se fazer evocar todo o sinal cristão do valor deste gesto ritual: ao enunciar o Confiteor (“eu, pecador, me confesso”) o corpo se apresenta passível e sujeito à força maior que o sobrepuja (que força poderia ser esta em HH?). O corpo ali tem de se fazer presente, afirma-se, escreve-se ao mesmo tempo em que relata. Redunda corpo sobre corpo. O corpo “real” recai sobre o corpo simbólico. O gesto é reiterado antes da cena de sagração: é preciso confessar, declarar-se, purificar-se para ter acesso ao corpo maior, plural poder-se-ia fazer evocar aqui. O valor do corpo é centrado no valor de (sua possibilidade) de presença: de aparecer, ou ainda, figurar.
O relato captura Lolita, mas nos apresenta também a insistência da figura de HH na voz que narra. Embora pareça, ou se pressuponha, que a história seja sobre Lolita, esta aparece apenas como o fantasma de um desejo que não encontra lugar na sociedade. E toda insistência na escritura última (HH morre antes do julgamento, mas deixa as notas prontas) parece ser um pedido neurótico de compreensão: “Quanto tento analisar minhas ânsias, motivações, atitudes e assim por diante, rendo-me a uma espécie de imaginação retrospectiva que alimenta a faculdade analítica
A questão central é que a racionalidade de HH dá o lugar de um pensamento para este desejo, para esta experiência, mas o desejo sempre excede seu lugar, não conforma, mas captura o desejo na proliferação dos desejos (basta pensar no desdobramento e na sombra que é Annabel para Lolita, bem como o atravessamento com Valeria e Monique, como experiências que antecipam as relações simbólicas que se cruzam e se co-significam).
De outra maneira, a oscilação entre Eva e Lilith (NABOKOV, 2011, p.25), bem como a preferência por esta última, supõe um lugar em que o pecado reencena suas facetas nas suas relações com o desejo, mas não se pode esquecer o lugar de que escreve HH: ele é um literato, ou uma tentativa de, sendo que seu relato o faz escrever de si, de sua experiência. Cabe a pergunta: até que ponto sua narrativa confessional é valida?
Acerca disto, da força desta figuração, resta a Nancy apenas a possibilidade de ver na vontade de mostrar o isto à força de uma verdade violenta, obsessiva. Para tanto escreve: “[...] somos obcecados pela vontade de mostrar um isto, e de nos convencermos que este isto, aqui, é o que não se pode ver nem tocar, nem aqui nem noutro lugar – e que isto é aquilo, não de qualquer maneira mas como o seu corpo. O corpo daquilo (Deus, absoluto, ou como se queira chamar), e que aquilo tenha um corpo ou que isto seja um corpo (e deste modo que isto seja o corpo, absolutamente), eis a nossa obsessão. [destaques no texto]” (NANCY, 2000, p.5).
Corpo tomado pela língua em Lolita, que se captura na língua que anseia o beijo da ninfeta e que faz figurar, apesar de toda racionalidade, certa inocência infantil no relato de HH que possibilita sua “absolvição moral”. Em última instância, poder-se-ia, inocentemente, dizer: “ele deseja, mas ele sofre!”. Porém, isto não resolve a leitura da obra.
Isto poderia ser pensado teoricamente nas proposições de Roland Barthes, enquanto um corpo todo fragmento, que ainda que por outro procedimento, chega a concluir (elaborando um verbete sobre o corpo em Fragments d’um discours amoureux) que o corpo é “toute pensée, tout émoi, tout intéret suscités dans le sujet amoreux par le corps aimé” todo pensamento, todo elã, todo interesse suscitado no sujeito amoros pelo corpo amado] (BARTHES, 1977, p.85). Este corpo, em Roland Barthes, tendo em vista sua leitura de Lacan, é um corpo que age como/enquanto corpo, corpo “sensorial” (há um corpo que sofre, há um pathos [Paixão: no cristianismo parece definir a relação do singular com o absoluto] de ausência, uma demanda de corpo), ao passo que isto poderia se aproximar ao que chama Nancy de corpo dos sentidos. Há que se ressaltar que Lacan ao discorrer sobre o émoi, dentro desta sua ligação com a emoção, mas que quer significar a revolta, o motim, a revolução, a agitação, percebe a enfática de sua raiz etimológica: ex-magere, que se põe justamente neste lugar da emoção, perturbação, comoção e choque nervoso, que em HH parece abrir o espaço de seus primeiros sintomas: “ataques de vertigem e taquicardia” (NABOKOV, 2011, p. 31).
Tomados os pressupostos teóricos nesta questão, podemos chegar a um a priori, ou um postulado que fornece um lugar de reflexão para esta leitura: o corpo faz eco aqui na escitura, é duplo (como o é Lolita-Annabel, como a própria duplicidade de HH, figurando em dois H, como um retorno diferido da letra que faz nome e cria o espaço simbólico do corpo), , lugar de travessia (um corpo que escreve), de contato com o outro (a experiência erótica-erógena). O corpo é lugar da ruína do sujeito, o que forçaria toda escrita a ser ex-critura (dejeto, ejaculação, algo que salta da escrita, que é expelido pelo corpo: catarse!) de um corpo e, portanto, gozo, pecado, ou novamente a reafirmação do subtítulo: confissão.
Neste sentido, confissão e autobiografia, não é descabido fazer Derrida ler ao contraste Lolita, quando este afirma que “A partir disso, tento-lhes, em particular de mim, privadamente ou em público, mas em particular. Este tempo seria também o que separa, em princípio, e se fosse possível, a autobiografia da ficção. A autobiografia torna-se confissão quando o discurso sobre si não dissocia a verdade da revelação, portanto, da falta, do mal e dos males. E sobretudo de uma verdade que seria devida, de uma dívida em verdade que precisaria ser quitada. Por que dever-se-ia a verdade? Por que pertenceria à essência da verdade ser devida, e nua? E, portanto, confessada? Por que este dever de estar quite com a verdade, se esconder a verdade, fingir a verdade, fingir também esconder-se, fingir esconder-se ou esconder a verdade que já não fosse experiência do mal e dos males, de uma falta possível, de uma culpabilidade, de uma dívida – de um engano e de uma mentira? (DERRIDA, 2002, p.44-5)”. Perguntas que cabem e podem ser colocadas a partir e na contraface para se fazer derivar os sentidos que tomam como centro o personagem [semblante] proposto em/com HH.
Nesta direção, vontade de saber e sexualidade confluem, bem como o fazer da narrativa em questão faz com que ao lado de Derrida se possa, feitas as devidas salvaguardas teóricas, abrir a série com Michel Foucault que resgatar o vienense Freud (tencionando fugir ao “conformismo” deste [p.11]), ao ler as condições de uma scientia sexualis, capítulo terceiro de Histoire de la Sexualité, ao propor uma leitura acerca da confissão, diz: “Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; é também, um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de suprimir para poder manifestar-se; em fim, um ritual onde a enunciação em si, independentemente de suas conseqüências externas, produz que a articula modificações extrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação (1988, p.61).
É a partir deste lugar que se pode entender a derivação de Lolita enquando dada no imaginário engendrado pelo simbólico que reside na escrita de HH. É Lolita a insígnia de um desejo que se disse, que ultrapassou seu inter-dito e que como interdição social precisa do aval do leitor.
Se o que fala Foucault é do espaço cedido do sexo, com a colocação do sexo em discurso (o que acontece a todo momento em Lolita, é a explicação de um ato, de uma passagem ao ato, de uma suspensão normativa social, é o fazer sexo a partir do relato – uso da língua enquanto instrumento erótico), procedimento que ainda que de lugares diferentes realizam Lacan, Bataille, Sade, Nancy, e que o historiador demonstra que este lugar, a confissão, era o único espaço reservado ao elemento sexual em sua forma discursiva, não elaborando à maneira oriental uma “arte erótica”, mas faz ress-urgir rompendo o limite do espaço levantado alegoricamente por ele enquanto “os lacres da reminiscência ou do esquecimento”. A verdade em questão não é garantida, mas velada pela implicação do eu no sacrifício (o julgamento efetivo e moral de HH), para, como também reconhece Foucault, o discurso de verdade em questão fazer sentido não em quem o recebe, mas de quem é extorquido (p.62) (No caso de Lolita, a extorsão do pedófilo de certa dimensão da inocência justificada pelo aspecto divinatório de suas ninfetas, acaba por eximir, mas não implica no verdadeiro, mas impõe um lugar, uma lógica que sustenta uma verdade no romance: o desejo de HH. Se então Foucault revela que “a confissão foi, e permanece ainda hoje, a confissão é a matriz geral que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o sexo”(p.62) e admita, nas cenas da história sua mudança, creio que o que deixaria inquieto Nancy não é que a confissão produza um discurso verdadeiro, mas que Foucault possa entender e empreender certa busca de “o” discurso verdadeiro. Assim, se a confissão abre o espaço para dizer o que foi feito, o que foi perpenetrado no ato sexual, a confissão é, portanto, lugar da escuta (lugar que evoca a dimensão da alteridade, uma lógica outra da recepção, valor de troca simbólica que exige a presença do leitor).
Acho que estes são os primeiros caminhos que a leitura vem fazendo eco. Dúvidas, perguntem. Isto é, se não me fiz claro. Só espero não ter encerrado a discussão…