sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Lolita: leitura em curso


(para os amigues de Hermione)

Após minhas breves notas de ontem (via grupo de discussão), resolvi organizar as minhas percepções sobre Lolita, até agora:
O livro é da década de 50, sendo que a história se desenvolve nas primeiras décadas (uma das datas situadas tem como eixo os anos 30), pluridimensional no espaço geográfico: Itália, França, Inglaterra e Estados Unidos. O livro de Nabokov parece ser a tentativa de uma determinação ou uma reapropriação da grande narrativa pequeno burguesa, porém de um lugar em que ainda parece se fazer ouvir toda uma política “moral” do Fin-de-Siècle. Dado importante, porque é na Viena Fin-de-Siècle que Freud está escrevendo e não menos importante o fato de HH ser um parisiense (Nasce em 1910), mas filho de um suíço (haveria que se reportar ainda talvez o eixo de significação que isto pode assumir na narrativa, dado haver um preconceito francófono em relação aos suíços).
O livro se insere numa tradição mais ampla de escrita, pressupõe-se autobiográfico e poderia ser lido tendo na contraface Liasons Dangereuses, de Chordellos de Laclos. Por vezes seria possível um paralelo entre o par Valmont-Merteuil com HH. E muito embora o livro de Laclos tenha o caráter epistolar, a narrativa de HH é intermediada como um relato (importante antever as mudanças na escrita e a oscilação de uma primeira para uma terceira pessoa).
Logo na abertura, o livro traz a insígnia de seu subtítulo: “ou confissão de um viúvo branco”. Desta maneira, ao servir como confissão, relato do eu, também serve para a autodefesa perante o julgamento, lembre-se que HH morre poucos dias antes que isto ocorra, sendo que a confissão é publicada apenas via cláusula testamentaria, para qual o editor, chamado de Jonh Ray, que assume o lugar acadêmico e ao mesmo tempo de selo editorial (uma vez que a escrita autobiográfica supõe no lugar da ficção do eu, a gravitação dos fatos a partir de uma percepção central, que se quer real ou verdadeira). O livro mantém, nas vias de Ray, sua função pedagógica, tal como anunciado logo na abertura de Liasons dangereuses. Por outro lado, é assumida certa fenomenologia dos personagens: “Como relato de caso, Lolita, há de tornar-se, sem dúvida, um clássico dos círculos psiquiátricos. Como obra de arte, transcende seus aspectos expiatórios; e ainda mais importante para nós que sua importância científica, ou seu valor literário, é o impacto ético que o livro há de ter sobre o leitor sério; pois neste pungente estudo pessoal oculta-se uma lição para todos [eis a pedagogia e uma determinação da literatura nos termos de Ray, ph.D]; a criança obstinada, a mãe egoísta, o maníaco ofegante – não são meros personagens vivamente descritos numa história singular: eles nos advertem contra tendências perigosas; eles nos apontam males poderosos” (NABOKOV, 2011, p. 10).
O valor da ficção só se assume caso se coloque à escuta de HH. Dele se demanda, parece que isto emana do leitor (enquanto representante social), uma explicação para os fatos, que os conforme, que os apazigúe. Em sua escrita, testemunhal, HH nos oferece um corpo que demanda, não de um perdão católico, mas de uma aceitação social. Qual seu mal? qual a inevitabilidade de seu desejo?
Por outro lado, a partir do subtítulo, Confissão, pode-se fazer evocar todo o sinal cristão do valor deste gesto ritual: ao enunciar o Confiteor (“eu, pecador, me confesso”) o corpo se apresenta passível e sujeito à força maior que o sobrepuja (que força poderia ser esta em HH?). O corpo ali tem de se fazer presente, afirma-se, escreve-se ao mesmo tempo em que relata. Redunda corpo sobre corpo. O corpo “real” recai sobre o corpo simbólico. O gesto é reiterado antes da cena de sagração: é preciso confessar, declarar-se, purificar-se para ter acesso ao corpo maior, plural poder-se-ia fazer evocar aqui. O valor do corpo é centrado no valor de (sua possibilidade) de presença: de aparecer, ou ainda, figurar.
O relato captura Lolita, mas nos apresenta também a insistência da figura de HH na voz que narra. Embora pareça, ou se pressuponha, que a história seja sobre Lolita, esta aparece apenas como o fantasma de um desejo que não encontra lugar na sociedade. E toda insistência na escritura última (HH morre antes do julgamento, mas deixa as notas prontas) parece ser um pedido neurótico de compreensão: “Quanto tento analisar minhas ânsias, motivações, atitudes e assim por diante, rendo-me a uma espécie de imaginação retrospectiva que alimenta a faculdade analítica
A questão central é que a racionalidade de HH dá o lugar de um pensamento para este desejo, para esta experiência, mas o desejo sempre excede seu lugar, não conforma, mas captura o desejo na proliferação dos desejos (basta pensar no desdobramento e na sombra que é Annabel para Lolita, bem como o atravessamento com Valeria e Monique, como experiências que antecipam as relações simbólicas que se cruzam e se co-significam).
De outra maneira, a oscilação entre Eva e Lilith (NABOKOV, 2011, p.25), bem como a preferência por esta última, supõe um lugar em que o pecado reencena suas facetas nas suas relações com o desejo, mas não se pode esquecer o lugar de que escreve HH: ele é um literato, ou uma tentativa de, sendo que seu relato o faz escrever de si, de sua experiência. Cabe a pergunta: até que ponto sua narrativa confessional é valida?
Acerca disto, da força desta figuração, resta a Nancy apenas a possibilidade de ver na vontade de mostrar o isto à força de uma verdade violenta, obsessiva. Para tanto escreve: “[...] somos obcecados pela vontade de mostrar um isto, e de nos convencermos que este isto, aqui, é o que não se pode ver nem tocar, nem aqui nem noutro lugar – e que isto é aquilo, não de qualquer maneira mas como o seu corpo. O corpo daquilo (Deus, absoluto, ou como se queira chamar), e que aquilo tenha um corpo ou que isto seja um corpo (e deste modo que isto seja o corpo, absolutamente), eis a nossa obsessão. [destaques no texto]” (NANCY, 2000, p.5).
Corpo tomado pela língua em Lolita, que se captura na língua que anseia o beijo da ninfeta e que faz figurar, apesar de toda racionalidade, certa inocência infantil no relato de HH que possibilita sua “absolvição moral”. Em última instância, poder-se-ia, inocentemente, dizer: “ele deseja, mas ele sofre!”. Porém, isto não resolve a leitura da obra.
Isto poderia ser pensado teoricamente nas proposições de Roland Barthes, enquanto um corpo todo fragmento, que ainda que por outro procedimento, chega a concluir (elaborando um verbete sobre o corpo em Fragments d’um discours amoureux) que o corpo é “toute pensée, tout émoi, tout intéret suscités dans le sujet amoreux par le corps aimé” todo pensamento, todo elã, todo interesse suscitado no sujeito amoros pelo corpo amado] (BARTHES, 1977, p.85). Este corpo, em Roland Barthes, tendo em vista sua leitura de Lacan, é um corpo que age como/enquanto corpo, corpo “sensorial” (há um corpo que sofre, há um pathos [Paixão: no cristianismo parece definir a relação do singular com o absoluto] de ausência, uma demanda de corpo), ao passo que isto poderia se aproximar ao que chama Nancy de corpo dos sentidos. Há que se ressaltar que Lacan ao discorrer sobre o émoi, dentro desta sua ligação com a emoção, mas que quer significar a revolta, o motim, a revolução, a agitação, percebe a enfática de sua raiz etimológica: ex-magere, que se põe justamente neste lugar da emoção, perturbação, comoção e choque nervoso, que em HH parece abrir o espaço de seus primeiros sintomas: “ataques de vertigem e taquicardia” (NABOKOV, 2011, p. 31).
Tomados os pressupostos teóricos nesta questão, podemos chegar a um a priori, ou um postulado que fornece um lugar de reflexão para esta leitura: o corpo faz eco aqui na escitura, é duplo (como o é Lolita-Annabel, como a própria duplicidade de HH, figurando em dois H, como um retorno diferido da letra que faz nome e cria o espaço simbólico do corpo), , lugar de travessia (um corpo que escreve), de contato com o outro (a experiência erótica-erógena). O corpo é lugar da ruína do sujeito, o que forçaria toda escrita a ser ex-critura (dejeto, ejaculação, algo que salta da escrita, que é expelido pelo corpo: catarse!) de um corpo e, portanto, gozo, pecado, ou novamente a reafirmação do subtítulo: confissão.
Neste sentido, confissão e autobiografia, não é descabido fazer Derrida ler ao contraste Lolita, quando este afirma que “A partir disso, tento-lhes, em particular de mim, privadamente ou em público, mas em particular. Este tempo seria também o que separa, em princípio, e se fosse possível, a autobiografia da ficção. A autobiografia torna-se confissão quando o discurso sobre si não dissocia a verdade da revelação, portanto, da falta, do mal e dos males. E sobretudo de uma verdade que seria devida, de uma dívida em verdade que precisaria ser quitada. Por que dever-se-ia a verdade? Por que pertenceria à essência da verdade ser devida, e nua? E, portanto, confessada? Por que este dever de estar quite com a verdade, se esconder a verdade, fingir a verdade, fingir também esconder-se, fingir esconder-se ou esconder a verdade que já não fosse experiência do mal e dos males, de uma falta possível, de uma culpabilidade, de uma dívida – de um engano e de uma mentira? (DERRIDA, 2002, p.44-5)”. Perguntas que cabem e podem ser colocadas a partir e na contraface para se fazer derivar os sentidos que tomam como centro o personagem [semblante] proposto em/com HH.
Nesta direção, vontade de saber e sexualidade confluem, bem como o fazer da narrativa em questão faz com que ao lado de Derrida se possa, feitas as devidas salvaguardas teóricas, abrir a série com Michel Foucault que resgatar o vienense Freud (tencionando fugir ao “conformismo” deste [p.11]), ao ler as condições de uma scientia sexualis, capítulo terceiro de Histoire de la Sexualité, ao propor uma leitura acerca da confissão, diz: “Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; é também, um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de suprimir para poder manifestar-se; em fim, um ritual onde a enunciação em si, independentemente de suas conseqüências externas, produz que a articula modificações extrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação (1988, p.61).
É a partir deste lugar que se pode entender a derivação de Lolita enquando dada no imaginário engendrado pelo simbólico que reside na escrita de HH. É Lolita a insígnia de um desejo que se disse, que ultrapassou seu inter-dito e que como interdição social precisa do aval do leitor.
Se o que fala Foucault é do espaço cedido do sexo, com a colocação do sexo em discurso (o que acontece a todo momento em Lolita, é a explicação de um ato, de uma passagem ao ato, de uma suspensão normativa social, é o fazer sexo a partir do relato – uso da língua enquanto instrumento erótico), procedimento que ainda que de lugares diferentes realizam Lacan, Bataille, Sade, Nancy, e que o historiador demonstra que este lugar, a confissão, era o único espaço reservado ao elemento sexual em sua forma discursiva, não elaborando à maneira oriental uma “arte erótica”, mas faz ress-urgir rompendo o limite do espaço levantado alegoricamente por ele enquanto “os lacres da reminiscência ou do esquecimento”. A verdade em questão não é garantida, mas velada pela implicação do eu no sacrifício (o julgamento efetivo e moral de HH), para, como também reconhece Foucault, o discurso de verdade em questão fazer sentido não em quem o recebe, mas de quem é extorquido (p.62) (No caso de Lolita, a extorsão do pedófilo de certa dimensão da inocência justificada pelo aspecto divinatório de suas ninfetas, acaba por eximir, mas não implica no verdadeiro, mas impõe um lugar, uma lógica que sustenta uma verdade no romance: o desejo de HH. Se então Foucault revela que “a confissão foi, e permanece ainda hoje, a confissão é a matriz geral que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o sexo”(p.62) e admita, nas cenas da história sua mudança, creio que o que deixaria inquieto Nancy não é que a confissão produza um discurso verdadeiro, mas que Foucault possa entender e empreender certa busca de “o” discurso verdadeiro. Assim, se a confissão abre o espaço para dizer o que foi feito, o que foi perpenetrado no ato sexual, a confissão é, portanto, lugar da escuta (lugar que evoca a dimensão da alteridade, uma lógica outra da recepção, valor de troca simbólica que exige a presença do leitor).
Acho que estes são os primeiros caminhos que a leitura vem fazendo eco. Dúvidas, perguntem. Isto é, se não me fiz claro. Só espero não ter encerrado a discussão…

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