quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Notas suplementares sobre Dragon Ball


(Para Michele Martins de Oliveira)

É preciso entender, antes de realizar uma leitura sociológica, qual a aparência formal que esta narrativa, dado que a forma do desenho-seriado nada mais é que um modo de contar um relato, assume. É uma aventura, certamente, mas o modelo padrão escapa ao modo épico, mas se sujeita ao elemento trágico, conformado, sobretudo na padronização de uma “herança trágica”, que pode ser traduzida num elemento proustiano, como em La Recherche: nos pontos em que a narrativa é uma narrativa de gerações (no caso trágico, por exemplo, se pode situar isto na passagem do Édipo para Antígona): tem-se Goku, depois Gohan, depois Goten (ainda que no mesmo grau de parentesco que Gohan), Pan (neta de Goku) e Goku Jr. (bisneto de Goku e filho de Pan que aparece no último episódio de Dragon Ball GT).
O elemento grego aqui é salientado por outro ponto de vista, que aqui interessaria ao relato. Se rejeito a questão do épico, é justamente por deixar de lado a conformação de um ethos, enquanto o ideal de uma comunidade, para salientar o fundamento da  pólis. Há que se observar que a mesma dimensão dúplice entre homens e deuses é retraduzida na animação: uma instituição como a dos Senhores Kaio [Kaioshins], bem como Kami Sama, que são personagens (“quase-que”) imortais que decidem e estão acima dos humanos, como grandes gerentes (ou reguladores) da instituição cósmica, seja dos sistemas planetários, seja do planeta Terra, seja ainda da vida após a morte (como é o caso do Sr. Enmadaio), cujo papel é, de certa forma, uma garantia funcional.
A hipótese trágica ainda se sustenta na manutenção do mote que dá origem a animação: a satisfação do desejo. Bulma é impelida, por seu desejo por um “namorado perfeito”, na busca das esferas do dragão e  no processo conhece Goku (que possui uma das esferas). Os vilões, que de início também partilham esta busca (sendo o desejo de imortalidade uma possível tradução do conceito se soberania). De outro lado ainda, o destino geral da comunidade é posto nas mãos de um estrageiro: se Édipo, como soberano de Tebas, é um estrangeiro, não obstante seu drama é que é um filho de Tebas, temos que Goku, é estrangeiro (um sayajin), mas não obstante seu ponto de pertença é terráqueo (o que instaura o paradoxo, por exemplo, dele ter sido enviado para destruir a terra e acabar por defendê-la – na inversão de significações a partir de um significante-mestre que acabar por dar novas significações ao que anteriormente exposto, procedimento recorrente na tragédia). Porém, o drama apesar de sua aparência trágica se  resolve de uma maneira pouco grega: tudo sempre acaba bem. Solução pequeno-burguesa e idealizada em que após uma serie de eventos catastróficos a paz, ainda que por um curto período, pode ser desfrutada.
Duas perguntas então podem ser situadas nas passagens da gerações, tal como apreendidas em DB, DBZ e DBGT: se o tempo passa, (1) como o espaço configurado pela animação situa suas próprias mudanças;  e,(2) quais as mudanças estruturais e sociais travadas e encenadas na representação destas cidades?
 Da cidade rústica com dinossauros à Cosmopólis de Trunks (“o do futuro”), quais os entrechoques de representação aí? É claramente evidenciada que toda transformação histórica pressupõe uma transformação no espaço, embora no espaço híbrido de Dragon ball, tais transformações são sobretudo de uma sobredeterminação sócio-cultural. Explico: cidades ultratecnológicas, como a de Bulma, coexistem ao lado de vilas pré-históricas (o que serve como alegoria para condição do nosso mundo contemporâneo, já que há locais bem-desenvolvidos e outros que ainda, por razões culturais, mantém-se com uma tecnologia “artesanal”), fazendo com a  linearidade cronológica possa ser cindir em tempos que possuem suas próprias variáveis: tecnologia, organização humana (violência/barbárie), sociabilidade. Não apenas as cidades e comunidades que são representadas ao longo da animação variam, como os próprios planetas visitados oferecem "complexos culturais" que favorecem a polissemia que a vida (tomada entre experiência [Erfahrung] e vivência [Erlebnis])  assume (desde a-história, como o ponto observador, da morada dos Kaios e de Kami-Sama, ao momento pós-histórico do julgamento das almas por Enmadaio, que podem ser enviadas a vida, isto é, novamente à história por  Shenlong – ver o caso de Kuririn).
Na esfera da vivência, saturada de eventos e sensações, resta ao seres em questão, os habitantes destas cidades (terráqueos, saiajins, namekuseijins, etc), a capacidade de reagir a estes estímulos, bem como aos intrusos – sempre alteridades radicais e por isso vilões dentro da narrativa). Numa abordagem freudiana: toda chegada de um vilão é traumática, já que a imposição de seu desejo ultrapassa a demanda destes “pequenos outros” que tentam, então, resistir a sua vontade imperiosa. O interessante também aqui é como o conceito de humano é relativizado: já que terráqueo ou namekuseijin marcam os planetas de origem, no caso a Terra ou Namekusei, a enfática a raça aparece no caso dos sayajins cuja origem está no planeta Vegeta. Há, portanto, a retomada de um tema  biopolítico dentro de um tema darwinista: qual é a raça superior capaz de colonizar (leia-se “imperar”) no universo? – O que instaura um debate étnico , que é uma das variáveis da animação no âmbito de sua representação, já que as raças em questão se organizam em estruturas políticas,  econômicas e sociais que configuram tanto a estética (arquitetura) de seus espaço, quando sua geografia. Assim é que dos planetas rurais (Namekusei) aos planetas marciais de regime espartano (Vegeta), o degradé civilizatório se arma: há mundos em ruínas (como Alpha, na Galáxia Sul, arrasado e inabitado), desérticos (como Arlia, mas que possuem vida inteligente), hiper-tecnocratas (como o planeta-máquina Big Ghetti Star) etc.
No caso das cidades de DBZ, sua memória pouco marca destes traumas, não há registros urbanos do que aconteceu, isto se supervalorizarmos a dimensão da história sobre a geografia, isto é, o dado diacrônico. No dado sincrônico, em que o espaço pode ser mapeado (assim, a geografia suplanta a história, já que em termos o que se tem é sempre a enfática de um presente, mesmo quando Mirai Trunks viaja do futuro, por exemplo). Um dado interessante por exemplo, é que o único momento em aparece um narrador para a história em Dragon Ball é na abertura do desenho em que este assume a voz que vai assinalar em que ponto da aventura (episódio) se esta, dando um título para o “capítulo” em questão.
Há elementos que são reiterados ao longo de toda animação, que fundam a circulação dos personagens: como a ilha de Mestre Kame, o deserto Yamcha, a montanha Frypan, a ilha Papaya (onde se realiza o torneio de artes marciais intitulado Tenkaichi Budokai), a Capital do Oeste (cidade de Bulma onde fica localizada a  Corporação Cápsula, uma espécie de monopólio no mercado mundial similar a Umbrella Corporation de Resident Evil, embora os limites destas avancem no terreno dos produtos farmacêuticos, armamentos, computadores e outras atividades clandestinas de pesquisa biológica, aquela produz também elementos técnicos variados, mas é enquadrada ao estilo de um "bom modelo"), etc. Outro dado relevante é a estruturação cardeal num eco claramente cristão, já que reflete a estrutura celestial ( Sr. Kaio do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste) que se expressa nas capitais, também do Leste, Oeste, Sul, Norte e Central.
Bom, o enfoque claro do desenho são nestes heróis, marcados por uma personalidade exploradora, em sentido amplo, e aventureira. São pessoas fora da ordem social pré-estabelecida ou mesmo, para nos expressarmos em jargão marxista, fora da luta de classes. Por outro lado, expressão de um modo muito singular a dialética do senhor e do escravo, com enfoque na luta originária (dois homens lutam por reconhecimento). De profissões efetivas (liberais), pouco se retrata, a não ser no mercado anônimo ou como pano-de-fundo do desenho, como algo que dá suporte a manutenção da vida (os restaurantes, mercados populares, escolas, etc). A profissão-chave é a de lutador e guerreiro (a maior parte dos personagens com nome se enquadra aqui), o que enfatiza o caráter militar da animação, há ainda os doutores (embora não se saiba exatamente em quê) e cientistas (como Myuu, o “mau” Dr. Maki Gero e o “bom”  Dr. Brief), feiticeiros, mágico e magos (Bibidi, Hoi e Uranai Baba), monges (Kuririn e Yajirobe), professores (a maior parte dos “conhecidos” são professores de artes marciais, como Sr. Satan e Mestre Kame), mas há também personagens paralelos como Mestre Karin, cuja função não é muito clara, mas sabe-se que  é quem cultiva as sementes dos deuses [senzu beans], Mez  que é um ogro que cuida e ajuda a administrar o inferno, Nappa que é um guerreiro, mas também é o guarda-espadas de Vegeta que por sinal é um príncipe, como Ox King é rei (rei Cutelo), Pui Pui que é guarda-costas de Badidi,  como há há fazendeiros, andróides, robôs, mercenários, ladrões (Yamcha, por exemplo é um ladrão do deserto). Em meio a isto, seguem-se personagens menores que também mereceriam uma leitura mais pontual, como é o caso do câmera man que registra o torneio de Cell e o repórter sem nome que o acompanha, os comentaristas Bodoukai, Lunch que é cozinheira, mas como leitura de oposição há ainda as donas de casa Sra. Brief (burguesa) e Chi Chi (que embora seja filha do rei Cutelo e, portanto, uma princesa, age por vezes como uma dona de casa de classe média) e, por fim, o Sr. Popo, que é negro com turbante indiano, que é o ajudante de Kami Sama da Terra.

De resto, a pergunta que fica é: como a nossa cultura (se compreendermos cultura como um  Todo que abarca desde as expressões artísticas, as instituições humanas, a trama discursiva –isto é, história, economia, política, etc - a conceitos abstratos tais como liberdade, igualdade, etc) é representada? Como os sistemas alegóricos e dispares da ficção proporcionam uma leitura de nossa realidade,  revisitando seus problemas e tensões? Como dar potência crítica a animação através do nosso contraponto cotidiano? Como as relações, para além do projeto visual, demonstram estes seres relacionando-se com seu espaço e uns com outros, como isto pode (e deve) ser lido alegórica, metafórica ou metonimicamente como um reflexo da cultura (e qual noção cultural específica, já que na dimensão singular do desenho, nasce na cultura japonesa, como mangá shounen, lançado no Brasil pela editora Abril  e veiculado pela rede Globo, em 2001) - questões levantadas   nas abordagens de Sônia Luyten.
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Nota:
Este texto segue dedicado a  Michele justamente por responder a um pedido de comentário ao seu Trabalho de Conclusão do Curso de Geografia. Não tendo tido acesso ao trabalho final, mas apenas a fragmento dele, tencionei desenhar aqui um modo de operar uma leitura em suas diretrizes mais genéricas, apontando possibilidades e caminhos, apesar de não realizar, em absoluto, nenhuma espécie de hipótese teórica.  

Um comentário:

  1. *-* Seu LINDO! Uma visão dessa sobre o start que eu dei com meu trabalho só amplia tudo! Eu bem que queria fazer o caminho oposto, do tipo, o que os desenhos influenciam na "urbanidade" dos habitantes das cidades, porém é muito difícil documentar isso, tornar isso palpável, já esse caminho que segui de representação do mundo "real" é fantástico e cada vez que mergulho, dou saltinhos de alegria auiheuiaheuie.
    Só de pensar que meu trabalho é, de fato, relevante fico muito feliz! =D
    Obrigada pelos incentivos e análises <3

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