(Por Rodolfo Previato)
Ele descia a rua de paralelepípedos diariamente.
No bairro velho da antiga cidade, com seus casarões quase caídos, suas calçadas péssimas, sua iluminação precária. Aquele cheiro estranho que dominava as esquinas, invadia os becos, controlava os moradores. Aquele cheiro tão diferente dos demais cheiros da cidade, aquele cheiro que dava exclusividade para aquela vizinhança. Nada no mundo era como aquilo. Alguns diziam que não, que toda cidade velha tinha um bairro como aquele, com um cheiro como aquele, com pessoas como aquelas que achavam que seu bairro era o único no mundo com aquele cheiro. E ninguém sabia de onde vinha ou do que era aquele cheiro. Era o cheiro do bairro.
E ele descia a rua de paralelepípedos, sujos e úmidos, escorregadios. Ele descia diariamente. Menos no domingo é claro, domingo é dia de descanso. Ele descia quase que diariamente a rua com seu terno de brechó, seus sapatos pretos de liquidação, brilhantes de tão engraxados. Seus sapatos eram seu orgulho. Com sua gravata listrada comprada na 25 de Março, ele descia para o inferno.
O inferno. Assim os nativos do bairro velho chamavam o resto da cidade, pois no resto, na parte nova da antiga cidade, onde as ruas não eram de paralelepípedos escorregadios, não havia paz. No velho bairro havia paz.
E depois de descer ele chegava onde os paralelepípedos acabavam, em uma esquina onde o cheiro do bairro era bem fraco. Lá na esquina estava o bar onde ele tomava diariamente seu café. Quase diariamente, domingo é dia de descanso, não de tomar café fora de casa. No bar ele sentava sempre no primeiro banco, encostado no balcão, perto da porta. Ele gostava de sentar ali para receber os primeiros raios de sol. O bar do Cardoso. Seu Cardoso vinha até ele e pedia ‘o que ia ser nessa manhã companheiro Gomes’. Gomes era o sobrenome dele. Cardoso pedia o que ia ser, mesmo já sabendo o que ele, Gomes, iria querer. E ele respondia sempre cabisbaixo:
– Um pão com presunto e um suco de abacaxi.
Nada mais dizia, a não ser o obrigado no final da refeição. E Cardoso já havia cansado de tentar puxar assunto.
Todos no bar se perguntavam quem realmente era ele, de onde ele viera, o que aconteceu com ele para parecer tão triste, o que ele fazia da vida, onde ele trabalhava. Todos queriam saber e todos já haviam cansado de perguntar. Todos no bar simplesmente sabiam que diariamente. Menos no domingo. Ele apareceria ali na hora certa e pediria a mesma coisa e comeria e diria obrigado e iria embora.
E era assim, diariamente. Quase diariamente.
Ele desceu a rua de paralelepípedos.
Já sabia de cor onde pisar, há anos fazia sempre o mesmo trajeto de sua casa até a repartição onde trabalhava. Descia até o bar do Cardoso, sentava sempre no mesmo lugar para pegar os raios de sol da manhã e sempre pedia:
– Um pão com presunto e um suco de abacaxi.
Mas.
Naquela terça-feira ele sentou em seu lugar e pediu.
– Um pão com presunto e um suco de abacaxi.
E olhou para fora, como sempre, para ver o sol.
Alguém não habitual entrou no bar. Todos se conheciam ali, era um bairro que quase nunca alguém de fora vinha passear, não tinha o que fazer ali no bairro. E o estranho entrou no bar do Cardoso e sentou. O estranho sentou ao lado dele, do Gomes.
Cardoso veio com seu caminhar devagar, coisa que acontece com a idade, e entregou o pão com presunto e o suco de abacaxi a ele. O estranho olhou para Cardoso e pediu:
– O senhor me vê um pão com queijo e um café com leite, mais café do que leite.
E Cardoso concordou e foi buscar.
E naquele momento aconteceu o que muitos chamam de mágica, outros chamam de destino, alguns chamam de predestinação divina. E poucos chamam de Sonho.
Ele, Gomes, olhou o estranho e reconheceu seus olhos, reconheceu sua postura, reconheceu seus lábios, a cor dos cabelos. Mas ele, Gomes, sabia que aquele não era quem ele pensava, pois aquele quem ele pensava tinha a mesma idade dele, e aquele estranho no balcão era jovem. Ele pensou por um minuto alucinar.
Então Cardoso trouxe o pão, trouxe o café com leite e o estranho entregou a Cardoso uma foto e pediu se reconhecia quem era e disse um nome, primeiro nome, sem sobrenome.
E então Gomes ouviu o nome, estranhou, voltou a comer.
E Cardoso disse que não conhecia e o estranho disse então nome e sobrenome daquele da foto.
E Gomes levantou a cabeça. Involuntariamente. Gomes pediu o que aquele estranho queria com ele. E pela primeira vez em anos os clientes do bar do Cardoso ouviram a voz dele. E o estranho olhou para ele e disse que precisavam conversar. E Gomes concordou, ele conhecia aqueles olhos, aquela postura, aqueles lábios, aquela cor de cabelo. E Gomes e o estranho subiram a rua juntos, até a casa velha na rua de paralelepípedos.
Eles sentaram em um sofá roxo.
– Quem é você? – perguntou Gomes – Eu te conheço, não conheço?
– A mim não – disse o estranho – Mas conhece meu pai.
E Gomes então entendeu tudo.
– Então eu sei quem é você e sei quem é seu pai, e eu quero que vá embora agora! – Gomes levantou, falava alto como não falava há anos.
E o estranho sem saber o que fazer foi direto.
– Ele morreu.
E o semblante corado de Gomes desapareceu, seus joelhos não aguentaram seu corpo e ele caiu sobre o sofá. O estranho continuou:
– Ele me pediu pessoalmente para te trazer uma mensagem.
E Gomes derramou a primeira lágrima.
– Entregue então.
O estranho tirou do bolso um envelope lacrado e entregou. Levantou-se para ir embora. Gomes derramou outra lágrima. O estranho indo na direção da porta. Outra lágrima. O estranho, já não tão estranho para Gomes, gira a maçaneta. Gomes o interrompe pedindo que ele volte ao sofá. O estranho volta.
– Meu querido – dizia Gomes – Você sabe de tudo?
– Sim! – Confirmou o estranho se apresentando – Meu nome é Juan.
– Ele nunca me procurou, mesmo sabendo onde eu tento viver. – Mais duas lágrimas.
– Ele pediu para que você o perdoasse.
– Agora eu sei que tudo realmente acabou, e que ele não vai voltar, mas nem ao menos sei a razão de ele não ter voltado.
– Ele não podia, você não podia.
– Essa desculpa só valia para quando éramos jovens. – Mais lágrimas – Ao menos agora eu sei que tudo acabou.
O estranho, Juan, levantou. Caminhou até a porta, Gomes dessa vez não interrompeu. Gomes abre o envelope, tira o papel e lê. ‘Me perdoe, Eu nunca deixei de te amar. Era impossível quando nos conhecemos, tornou-se mais ainda com o tempo’. Juan olhou para trás, deixou cair uma lágrima, única. E foi embora. Gomes passou o resto do dia, no sofá. Lágrimas...
Eles se encontravam na casa de Rodrigo quase toda manhã. Menos na terça quando a mãe de Marcos o levava para a escola e no domingo, pois ambos acordavam tarde. Marcos batia cedo na porta de Rodrigo e a senhora Gomes atendia sempre dizendo que o menino já estava indo. Eles iam juntos para a escola. Eles se conheciam desde pequenos. Eles desciam juntos a rua de paralelepípedos até um bar que ficava no final do bairro, perto da escola. No bar eles tomavam café, eles gostavam de tomar café juntos. Rodrigo pedia um pão com queijo e presunto e café preto. Marcos pedia um pão com presunto e suco de abacaxi. Eles se conheciam desde pequenos, eles se amavam. E quando o mundo soube desse amor, tudo começou a desabar. Marcos foi mandado para o interior, Rodrigo foi proibido de sair de casa.
E o tempo passou, e agora grandes, ninguém mandava neles. Mas eles já estavam longe um do outro e o mundo continuava a odiá-los. Eles prometeram se amar e um dia se encontrar. E o tempo passou. E a vida cobrou resultados e eles se afastaram cada vez mais. E o tempo passou. E aquela dor continuou. E Rodrigo se afundou dentro de si próprio para fingir viver.
E o mundo matou aquele amor.
...Ele desceu a rua de paralelepípedos.
Sentou no mesmo lugar de sempre para ver os raios de sol. Cardoso veio até ele, mas mudou a pergunta:
– Me responderia algo se eu perguntasse? – A curiosidade de Cardoso foi alimentada pelo estranho acontecimento do dia anterior.
– Claro! – confirmou Gomes.
– Por que sempre o mesmo pedido?
– Porque era o preferido dele, pão com presunto e suco de abacaxi.
E Cardoso não questionou, mesmo sem entender. Virou-se e foi buscar o pedido.
– Cardoso? – Chamou Gomes.
Cardoso olhou para ele.
– Me vê um pão com queijo e presunto e um café preto, bem grande e sem açúcar. – Gomes sorriu, Gomes viveu.
Cardoso não entendeu, mas foi buscar o pedido.
– Cardoso? – Chamou Gomes.
Cardoso olhou para ele.
– Por favor, me chame de Rodrigo.
Gomes sorriu, Gomes viveu.
Já li no seu computador, gostei muito mesmo! Rodolfinho ♥
ResponderExcluirChorei seu mocinho T_T
ResponderExcluirAhh você conseguiu, sério muito lindo.