terça-feira, 12 de julho de 2011

Quem somos na escuridão

(Em diálogo com Pão com presunto e suco de abacaxi, de Rodolfo Previato).

“Para o outro, distante”.

O velho solar minava os passos e a sanidade. Há muito tempo ele já não saia de casa. Um bairro novo se erguera em torno do velho casarão. Prédios, primeiramente cinco ou seis andares, depois dez ou quinze e logo já não podia mais contar. Havia o labirinto, a catarata, a miopia e vertigem. A poeira se acumulando com o ranger das portas e dos ossos. Ele sabia, ele soubera, tanto quanto pode suportar. Quando os prédios o prenderam, recolheu-se.

Todas as manhãs (se é que poderia saber das manhãs, já que a insônia e as cortinas cerradas lhe impediam as horas) descia as escadas de mogno vermelho e carvalho branco, habilmente talhadas, envolto em seu robe de chambre, seda chinesa, azul turquesa. Ignorava os jornais, o telefone jamais tocara novamente. Com as mãos rijas erguia a mesma delicada chávena e levava aos lábios já enrugados. O doce do chá entornado numa dúvida amarga. Um tempo regido entre o descer das escadas, o chá da manhã, quase britânico, às cinco da tarde e o ronco ritmado da máquina-de-escrever que ainda se mantinha, fiel escudeira, sobrevivente.

Todas as noites, noites dele, uma moça entrava na casa, manhãs dela, deixava-lhe mais papéis ao lado da máquina, recolhia os escritos do dia anterior, uma nota sobre a escrivaninha, uma assinatura arrojada para quem usava um vestido novo e de péssima qualidade, bem como sapatos sempre arranhados.

Nos prédios em torno nada se perguntava sobre a estranha rotina daquela jovem que entrava e saia do velho casarão, mas muito se especulava sobre quando ela venderia, cedendo assim aos impulsos imobiliários, e quanto valeria o terreno. Pouco se suspeitava sobre esta existência insistente.

Meio-dia, não sabendo bem o porquê, ele desceu antes do devido e encontrou-a sentada em sua poltrona predileta, a dele, o pé direito insistente fazendo vezes de ponteiro de segundos, o salto arranhando o chão da saleta, as unhas roídas. “Senhor, não sabia o que fazer”, disse-lhe apontando um envelope sobre a mesa. “Sim, senhorita…”. Talvez não soubessem um o nome do outro, ela sempre pronunciara errado o nome dele, e ele não sabia bem o porquê dela tê-lo esperado acordar apenas por conta de um envelope que ela poderia ter simplesmente deixado lá, mantendo a ordem e a simetria.

Ele pegou o abridor de cartas da gaveta, num movimento firme para suas mãos trêmulas, não do nervoso, não sabia o que era isto, mas da idade. Folha simples, papel não timbrado, sem selo ou sigilo, assinatura mecânica, um suspiro irrompeu como única expressão possível.

“Aguarde-me, por favor, preciso ainda de um préstimo seu”, dirigiu-se a ela.

Ele andou até a biblioteca, alisou a máquina de escrever, “não…”, dirigiu-se até a estante, sacou de lá Mrs. Dalloway, a Londres de Virginia Woolf, abriu, colocou o envelope lá, retirando uma velha fotografia em preto e branco com dois rapazes em traje de campo. Parecia que os lábios tinham se crispado em um sorriso, talvez não. A memória podia trazer golpes em suas falhas. “Te voglio tanto bene…”, parecia ouvir ainda. “Laissez-faire”, murmurou, “laissez-faire”.

Pousou o livro sobre a escrivaninha, abriu uma das gavetas, retirou de lá um papel amarelecido, guardado, papel firme, timbrado com três pequenos miosótis de um azul déspota e desbotado, deste que não se dobra ao peso da letra, retirou sua pena e escreveu em rabiscos largos, mais desenho do que palavra, o negro da tinta sob o pálido do papel. Dobrou em três, revirando a aba com o destinatário para o lado de fora. Talvez ainda fosse possível escrever algo. Enquanto escrevia lançava olhares sobre a fotografia. “Io vidi li occhi, dove Amor si mise quando mi fece di sè pauroso”.

O que se passara realmente, entre Paris e Milano, entre dois territórios estranhos, ele capturara no silêncio daquela casa, na caixa de chapéus embaixo da cama, onde guardara os postais, as cartas, os diários… os esboços daquele rosto. Lembrava o painel que inventara e queimara na fatídica noite em que ambos se calaram. “…Geschichte…”. Quem desistiu primeiro?

A garota na sala, o senhor na biblioteca, ambos sabiam que havia um terceiro ausente que era presente demais, enchia a casa, que a obrigava a permanecer ali e ele a escrever. Ele sempre escrevia. Escrevia como o judeu errante vagava pelos desertos, para preencher os mapas, para mapear as idéias. Errava na sintaxe agora e tinha sede de outras palavras – água de deserto.

Escrevera demais, bem o sabia. Não tinha tempo. Ele decidira que ela mesma iria entregar a carta. Amassou o papel e o lançou à lareira apagada. Um estranho djinn ressurgia ali, incendiando a escuridão. Era preciso… a arritmia do seu peito era um interlocutor infame: não se podia esperar mais.

Síntese sempre havia sido o problema dele, esperava demais, sabia que algo se perdia ali, na carta enviada, entre excessos e vazios. Como dizer? Como saber-se entendido? Sacou outro papel, numa letra agitada, os rococós se abriam tocando os miosótis: “Da única maneira que eu poderia dizer isto: Szeretlek. Sublinhou a palavra estrangeira. Só os dois saberiam. Ou esperava que o outro lembrasse o sentido fragmentado. Era mais que um jogo às escuras, mas vidas nas sombras.

Voltou à sala, estendeu a ela o papel, dobrado com o mesmo requinte anterior, o livro, a fotografia e uma pequena caixinha que tirara no último momento da gaveta. Pálido, dirigiu-se a ela: “Clarissa, tens teu nome por conta disto”, apontou-lhe o livro, “a história é minha, o livro é seu, a escolha de teu nome é dele…”. Era a primeira vez que ela o via sorrir. Era a segunda vez que ele sentia que sorria num curto espaço de tempo. “Entregue a ele isto…”, deu-lhe a página dobrada, “e isto… “, entregou-lhe a caixinha, “diga-lhe que é a única maneira de dizer-lhe isto e que espero que ele entenda… é a última página para o caderno verde…”. Ela aquiesceu.

Levantou-se, recolheu o que deveria levar, deixou os papéis brancos novos ao lado da mesa de chá. Desejou-lhe um bom resto de dia e disse-lhe que voltaria na manhã seguinte. Saiu trancando a porta da frente com a chave que sacou do próprio, não se esquecendo de dar três voltas até ouvir o clique característico.

Ela não entendia o que acontecera, talvez ninguém além dos dois pudessem entender. Era como se eles estivessem jogando uma última partida de xadrez naquele momento, em que apostavam talvez o resto de sanidade ou de vida. Ela não sabia que poderia haver algo mais, escondido naquelas palavras estranhas que ela não entendia. Seu pai, a quem levava os pertences, a obrigara as finanças. Virginia Wolf lhe era apenas o personagem que dera um Oscar a Nicole Kidman. Agora aquela palavra estranha, como deveria pronunciá-la? “ ezêrétlêqui, arriscou, zêretléq”. Curiosa, abriu a caixinha, uma espécie de aliança que trazia gravada em seu interior “220”. De números ela entendia, mas aquilo não lhe fazia sentido. Enquanto tropeçava em pensamentos entrou, no metrô. Talvez o pai lhe explicasse algo, talvez não.

No casarão, o outro, acabava seu chá. Subiu os degraus. Já no quarto pegou a um canto um grande vinil e pôs a tocar na também velha vitrolinha. O outro lhe dera aquilo. Antes de deitar-se retirou da cabeça, ao lado da Recherche de Proust, um pequeno anel, observou-o: “284…”, repetiu em voz alta.

No escuro então, respiração pesada, tinha sono pela primeira vez, sem precisar ceder aos remédios. Os pensamentos ainda cavalgavam velozes. “220… 284… um amuleto feito em números… 17.296 e 18.416… Fermat… 9.363.584 e 9.437.057… Descartes… 1.184 e 1.210…. Paganini… ….”. Ele também gostava de matemática. “Isto é o que somos na escuridão…”.

Deixe estar. “…Aufheben”. Talvez o outro lembrasse ao menos o outro nome dos miosótis.

“A dúvida é sempre o que mais dói”.

Em torno disto, os prédios ignoraram todos os detalhes, até mesmo o topo do Edifício Copan.

Num trem noturno para Paris alguém folheava The metal and the flower, de P. K. Page.

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