terça-feira, 24 de agosto de 2010

Instruções de Bordo

(certamente para Eduardo Morato)

Je te regarde me regarder: mon oeil
Monte je ne sais d’où
A la surface de mon visage
Avec l’impertinent regard des lacs.
- Yvan Goll.

Preciso que você aperte bem os cintos, o que você vai ver é como acontece um crime. Não pergunte. Apenas observe bem. Respire fundo, talvez na primeira incisão jorre algumas gotas de sangue, não tenha nojo. A página não sente tanta dor assim. Ao mesmo tempo em que escrevo isto, não escrevo nada. Qual o efeito disto? Ora, sou pura ficção, ora me lês como pura biografia. Sem invenções o quê sempre aparece são sempre novos corredores na biblioteca. São sempre palavras roubadas. São sempre das palavras de outros que faço minhas meias-palavras, na impossibilidade de dizer de novo, digo ainda. Há sempre um limite de saída das palavras: tentar fazer o azul deixar de ser azul, ou ainda, ser azul na intermitência do vermelho. Usar as palavras até gastá-las para percebê-las apenas como esta coisa: palavra. De quatro versos que amo sempre posso fazer um teste, uma maneira de tocar a sensibilidade da linguagem (se é que isto é possível). O que é que reside aqui? um ser? uma lembrança? um nome? Talvez não seja preciso acreditar em um instante de consciência. Escrever talvez seja um crime nesta loucura desdobrada em que se crê acreditar como se fosse tão real quanto o corpo que escreve. Poderá um belo poema desabrochar uma flor? Quem é que diz eu aqui? Talvez o possível da experiência da escritura seja feito todo questionamento. O que te convido a fazer é a entrar no jogo. Assumir esta voz que não há no aprisionamento dos caracteres quando disponho um ao lado do outro. O seu sentido é no mínimo por mim consentido. (a-e-i-o-u ou b-c-d-e-f-g… como escolher?). Onde estão as manchas de sangue que te disse que jorrariam? Olhe suas mãos, do que elas estão sujas? É possível encontrar um pouco de mim aqui, sim, mas eu pergunto o que de mim você quer encontrar aqui? O crime que insisto que pode haver, mas que no fundo não há, ou há, mas velado e oculto por tantas palavras. É uma palavra circular aqui. Escrever é andar na superfície mais profunda da página, quase no lugar em que ele vira pele, mas não a minha pele, a tua pele que lê e que sente o que pode ter estado (se é que esteve) aqui. Cada leitor tem um projeto de leitura, de sua leitura. Prazer ou gozo, para além da descoberta ou do desvendamento. Talvez não haja verdade por trás das palavras; a não ser o outro lado da página, página que também aqui não há. Se um alquimista pode ser um educador e transformador da matéria, aquele que escreve pode fazer o mesmo, só que na esfera da linguagem. O que resta é uma grande imagem que inventa um mundo. Acho que é hora de mergulhar neste lago profundo, no raso da página, mas vai você primeiro. Eu não sei nadar…

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