quinta-feira, 24 de junho de 2010

Um encontro em nenhum passeio

(Ou de um Nietzsche a contrapelo à Caio Fernando Abreu)

Para Andrea de Carvalho, que certamente vai (tentar) entender.

Ele se chamava Dionísio e, não, não era bonito, não naquilo que defendo como regra básica de beleza, da harmonia dos traços, do equilíbrio das partes. Homem bruto, com cicatrizes pelo corpo, pés grandes, mãos grandes e tantas outras partes grandes. E como falava palavrões. E neste charme barbado todos o chamavam de macho e era cobiçado por tantas outras mulheres e homens, ele nunca tinha azar. Neste jeito bruto, rosto cortado em linhas retas por um cinzel indelicado e impreciso, seduzia no vazio, no calor da pele, nos tapas e socos que distribuía. Ele era homem. Piercings. Tatoos. Respondia a isso. Bebia, e bebia muito, era filho de alcoólatra e não deveria beber, mas bebia. Devorava e misturava tudo. Era bárbaro e nisto, neste jeito criminoso e sanguinário em jeans rasgado, camisa larga, vocabulário repleto de porra meu, vai tomar no seu cu, buceta, pega no meu pau, chupa gostoso etc etc etc. Ele perseguia qualquer corpo, ser movente, se se duvidasse ele perseguia até mesmo sombras e ecos. Sequer entendo como o encontrei, assim na saída da aula de ballet, ouvindo Chico Buarque, com o material aquarela na bolsa, pensando na aula de amanhã, na aula de ontem, nos projetos da feira da ciências, na eterna busca pelo dez. Entre inglês, francês, italiano, latim, grego e mil literaturas. Impossível esquecer que havia que melhorar a técnica de dedo mínimo para o violino. Menino, dezesseis anos, um metro e setenta e cinco centímetros, pequeno, esguio, magro, voando nos patins para casa. Eu o encontrei e foi de supetão. Eu bati nele. Atropelei-o. Bêbado, um metro e noventa de músculos, foi um encontro com um paredão. Senti-me o carrasco que ao atirar é fuzilado. Eu o atropelei, mas quem voou foi eu. Pincéis a um lado, cadernos a outro, violino estilhaçado, se soubesse das sapatilhas perdidas naquele momento seria uma dor a mais. Esfolei joelho. Logo eu que tinha medo das cicatrizes nos meus ângulos fotogênicos. Eu o odiei tanto, como os barulhos da madrugada que não me deixam dormir e me obrigavam a manipular, em algumas manhãs, meu estojo de maquiagem, entre corretivo, base, pó, blush, vermelhos, pálidos e dourados, a beleza se construía, sempre nova, sempre perfeita. Comedida. Corpo domesticado, de gestos medidos, de meias palavras: civilizada e luminosa. Perfeita. Eu o odiei. Precisava de um banho, urgente. O contato era o que mais doía. Ele olhou para mim, hálito de noite, de quem comeu e não gostou, expulsou-me dali, sequer me ajudou a recolher meu material, não obstante, com aqueles pezões passou por cima de mim e das minhas coisas. O silêncio era a única coisa que resistia e existia no choque. Como? Como existiam pessoas (pessoas?) assim? Pergunta que não pude responder, o banho era urgente, premente. Não podia ficar assim diante do público, diante de mim. Odiava estas circunstâncias fora de controle. Do meu controle. No banho, na cicatriz oculta (não mostraria para ninguém aquele joelho alquebrado) doía e ele se fazia premente ali. Como me vingar? Mas vingança não era coisa civilizada. Como resolver isso? Precisava montar um projeto (e eu era bom e projetos), mas nem sabia como o encontrar. Suportaria um novo contato? Manhã seguinte. Eu dormia pouco, tanto quanto comia pouco, como respirava pouco, vivia pouco (nos termos dele). Eu, Apolo, de família tradicional, nome de peso, sangue de peso. Alta estirpe e dores divinas. Tão grande, mas tão eu (conte quantos eus aparecem aqui e entenderás meu vício). Vivi para este caminho feito constelação, seguindo cometas, sabendo de astros, estrelas, divas e gênios. Tentando a todo custo ser melhor e mais (ainda) que todos eles. Manhã seguinte, dia seguinte, semana seguinte. Não o encontrei. Ele me perseguia, aqueles olhos vermelhos, no fundo dos meus olhos violeta, latejavam. Eu bancava o futuro de constelação e me fazia estrela. Para quê? Para tão pouco? Para que eu outra noite, desarmado, nem tinha bebido, ele me pegasse à força, me beijasse, me jogasse dentro do carro, diante dele meu corpo não respondia (o corpo era domínio dele). Ele não tinha mente para que eu pudesse argumentar. Eu sequer tive acesso ao meu spray de pimenta! Eu apenas estava ali, nas trevas, não lembro o lugar, e não estava disponível, eu era posse dele. Ele me tinha a disposição, minhas curvas e minhas linhas eram dele. Meu cérebro, minhas sinapses, meu trato, três gestos de grandeza, nada serviriam. Só sabia que precisava sobreviver, mas que não sobreviveria depois daquela noite. Ele se limpava em mim. Sujava-me tanto. Tanto. Eu não devia gostar, sabia, eu não podia gostar. Como manter minhas regras? Ele tinha músculos de pedreiro, de fera indomável, cheiro de corpo, do corpo que eu fingia em controlar. Ele segurava minhas mãos, mordia, gemia como um animal, fazia-me gritar, subir nos agudos, soltar o falsete sem controle, eu sentia a terra ao alcance da mão, tentava fugir, ele me batia, me trazia de novo, colocava-me entre suas coxas e continuava, arfando, xingando, batendo. Eu já delirava em febre, como quem se defende da vida criando um pesadelo do qual sempre se pode acordar. Eu queria acordar. Não podia cair na inconsciência. Eu não queria lutar, não podia lugar, ele queria resistência, ele gostava da resistência. Um lampejo de consciência no corpo branco ao luar: mármore. O silêncio. A imobilidade. A vida fora da cena. No seu corpo moreno diante disso ele não sabia reagir, o corpo dele falava, ele continuava, cada vez mais forte, mordendo, quase que tirando pedaços, socando, dando tapas, queria gozar da sua própria violência e não podia. Não se sabia que tinha o controle. Ele sequer poderia gozar do corpo vencido: havia naquele corpo uma inconsciência de lábios cerrados, respiração controlada e olhos faiscantes. Não havia possibilidade de vencedor ou vencido, mas havia só dor, tanta dor. Tanta dor. Tudo doía por estar ali. Tudo doía por não estar ali. Eu queria poder dizer mais, mas eu sei que ele me queria e eu queria poder querer a ele como ele me queria. Ele queria o que ele via. Eu era aquilo que não podia ser visto, era mais. Ele não sabia pedir, tomava. Eu não o queria, não naquilo que via, mas me fascinava. Ele estava bêbado. Ele parou. Olhou meu corpo nu, a mão grande passeava pelo meu corpo, murmurava que me queria para ele, que eu não poderia fugir dele, que ele me destruiria se não fosse dele, voltava a me morder, era de um desejo violento, um desejo embebido daquilo que restava como carne no próprio desejo. Eu jamais havia visto algo assim, nem mesmo nos reflexos selvagens já previstos pelo espelho nos dias em que apenas um banho de banheira, muita espuma, algum vinho e muita música clássica. Aqueles grandes olhos negros ainda me perseguem no escuro, tanto que não sei mais dormir de luz apagada. Tenho medo de encontrá-lo, não obstante quando quero sonhar com ele, uma maneira de domesticá-lo, apago as luzes. É o trauma. Como decidir sobre esta violência? Ah, todas essas marcas. Pior foi acordar, depois de tudo, sem saber se realmente tinha acontecido, mas tinha, era o que o meu corpo doído. O policial que me olhava sujo, desgrenhado, não sabia quem eu era, eu não podia comprovar quem eu era, ele tinha levado meus documentos. Como saber o que eu era na minha nobreza quando o sangue não podia falar? Ou melhor, era apenas o sangue que se deixava ver, na minha nudez, na marca na pele, no roxo do rosto (o gosto de raiva na boca era de um dente quebrado?), era bom se esquecer. A vergonha doía, o corpo se descobria, sem nada. Sem controle e sem poesia, apenas este lixo, quase dejeto que nasce e morre todos os dias, capitalizadamente, que serve mesas e que come nas mesas. Isso. Um isso que tinha uma mente que poderia pensar, ou não. Eu não sobrevivi ao limite violento. Ninguém gozou. Ninguém foi feliz. A angústia crescia. Ninguém morreu. Meus desenhos se tornaram escuros, minha música dissonante, minha dança uma queda, ruído e sujeira (era ele que me assombrava). Era feio, mas eu não era capaz do belo, do meu belo solar, claro, verdadeiro. Restava isso, que podia e não podia. Sem anjo. Sem gênio. Sem auge. Quando a polícia o prendeu, certamente bêbado, ainda portando meus documentos, eu tive de reconhecê-lo. Eu havia tentado desenhar o rosto dele tantas vezes, tantas vezes, para tentar vencê-lo e ele sempre figurava como o monstro de algum conto de fadas. Eu o reconheci. Ele me viu. Disse alguns palavrões, eu não entendia aqueles verbetes que não contavam nos meus dicionários. Agora, eis-me aqui. Diante do espólio, da ultima vergonha, em julgamento. No julgamento dele. Eu nem queria estar aqui, mas é minha função.

Eu sei que o amo, mas, senhores do júri, preciso que sejam lúcidos, preciso que ele tenha a pena máxima, a pena de morte, eu preciso ter novamente a minha liberdade. Para alguma perfeição tenho a cena armada, à Marilyn Monroe, a banheira, a espuma, o champagne, as pérolas, a música, um pouco de cianureto (sempre gostei de azul, sempre desejei um mármore mais azulado), mais cena e a decisão. O encontro com real, para preservar minha imagem. Sem mais maquiagem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário