sábado, 5 de junho de 2010

O DIA-B.Olha

Como enfrentar este espaço vazio, frio, úmido, que insiste entre as águas fora dele e as águas de dentro de mim. Quase nu. É, ainda, madrugada. Isto não importa, não fosse a vontade de gritar enlouquecidamente agora, não pela existência, para dizer do que resta de mim, desisti disso, mas para apenas gritar, sangrar os pulmões, selvagem e primitivo na noite que chove e não caem estrelas. Sentado na minha cama, entre duas janelas, o celular pronto para tocar me acordando (Como acordar se sequer sou capaz de dormir?), diviso o espelho. Não olho, ali, nas noites habita um demônio malfazejo. Ao alcance da mão esta minha caixa de jóias, abro ainda, tentando uma lembrança, talvez, tentando fingir o tempo que resta aquém do tempo. O tempo que palpita nas frontes (não suporto mais tentar ler João Cabral, mas sou fiel à lei e leio). A caixa preta luzidia, não veludo, pequena, singela, minha pequena arca da verdade. Minha coleção se resume a alguns pares de brincos ruins, com pedrinhas em tons de azul fascinante, rosa pálido, nada genial; o brinco com que furei minha orelha; o brinco logo após dele; um pingente de Iansã, me material desconhecido, pesado, presente para proteção; meu anel de bebê; um pingente defunto; uma aliança com um “teu…” grafado; um anel que me veio por carta para repor meu pequeno rosário da época de colégio que, não podendo perder as pérolas, perdi no Rio de Janeiro; há ainda o vazio significante de minha pequena pulseirinha de fecho mágico, com um pequeno rubi vermelho incrustado, roubada no auge de noites como essa em que eu ainda supunha que correr e sentir o vento no rosto era potencialmente uma maneira de enfrentar a vida (depois do roubo, parei de correr); bem como, a pulseira que agora tento colocar no pulso esquerdo, com o fecho meio solto, meio mole, que não uso por medo de perder. Não sei onde foram parar meus alfinetes de cachecol. Roubado ainda há minha efígie em pele de coral de anjo e fita de cetim, tão século XVI. De resto, sempre me sobra meu par de brilhantes na orelha. Um exercício descritivo poderia ter sido tão útil: ainda tenho tanto tempo pela frente. Tenho sede, mas não quero água. Tenho fome, mas não quero. Queria emagrecer um pouco mais, um pouco mais ainda, não me sentir ainda sujo, gordo ou suado. Talvez abrindo o meu espaço. Não sei se preciso, mas deveria liquifazer a obviedade destas referências, mas nem mesmo minha única leitora, com o que tem em mãos agora, é capaz de decodificar este telegramático. Gosto de pequenas delicadezas. Talvez depois da minha morte, que é quase recente, digo, próxima. Um bilhete, sem exigências, sempre satisfaz meus carinhos. Ainda tenho que inventar meu palco de amanhã, não quero mais maquiagem, as bolhas sobem a mente, quero chocolate, quero respirar. Certamente estarei mais frio que o dia. Desconheço meu público, mas não faria diferença saber dele também. Há algo que pesa, mas não sei dizer o que é, como o significado da palavra inefável. Diria talvez, sou gay, mas há dias que tenho fúrias secretas contra os gays. Diria talvez, sou mulher, mas há dias que tenho fúrias secretas contras as mulheres. Diria talvez, sou homem, mas há dias que tenho fúrias secretas contra os homens. Poderia, ainda, dizer que sou humano, mas ignoro simplesmente.

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