quinta-feira, 1 de abril de 2010

Suite Bergamasque

As notas vibravam um pouco acima do que deveriam. Entre as cortinas um gemido suspenso no ar, o arco feria ainda mais o violino. A dor fazia ecoar um prazer oitavado. Um pouco antes da chuva. Um enigma sem variações não faz um pescador de pérolas. O que dizer daquela voz distante que insiste na presença. Ele dizia para ele daquela presença que não houve, mas aconteceu como falta. O mar nem era tão grande. Os quilômetros ainda mais nítidos. Não havia, obstante, como. E não houve. Mas aconteceu algo mais. A força renitente de um querer, de um ‘te querer’ para se esconder no fundo, sem caprichos italianos, do escuro de seus olhos castanhos. As moscas se prendem na tinta fresca do quadro, borrando os contornos, dançando as borboletas de teus cílios. Uma silhueta estende a mão. No corredor, com o rosto baforando no vidro, ofegantes dedos insistem. A unha contra o vidro. A mão apertando o cristal, duas esquinas adiante, cinco andares abaixo, numa angústia delirante. A sede percorrendo o seco dos ossos como um lamento aspirado do pó de alguma estante. Não é preciso mais do que aquele instante: a mão oferecendo o copo, a mão que aceita o copo, a boca que bebe do copo, a boca que anseia a outra boca, os olhos que dizem o que a boca não consegue dizer, o corpo fazendo calor, o frio silêncio-bruma entre dois corpos. Não é mais necessária a marca estranha. Os quilômetros dobrando uma ilha ao meio, afundando os naufrágios estésicos em frotas de barquinhos de papel em retirada. O que resta de um poema que é dedicado aos olhos que não o podem ler? A garrafa de tequila sobre uma mesa de tampo negro e luzidio refletindo o quadro, um presente, enchendo-se de pó na cabeceira da cama onde dois corpos apenas tocam o silêncio rasgado em veias azuis e vermelhas da descoberta. Os olhos se olham, completos (pálpebras, íris, globo e cílios ainda), não se reiterando um no outro, apenas uma piscadela tácita de que aceita, oferece, aquiesce. Sem teorias.

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