segunda-feira, 26 de abril de 2010

Notas rápidas de viagem

(segunda, 26)

a torre ao fundo dói e lateja. não sou uma criança tão frágil, mas precisava saber no fundo da gaveta o que se passa e o que acontece. ainda não dormi para evitar os pesadelos. a mala ainda está ali, ao canto, toda pronta. caso me chames de volta. caso digas não. caso se afastes dentro do dominó do espelho em chamas.

(domingo, 25)

a donzela fugiu do castelo enquanto o príncipe dormia, conta penélope assustada em sua trama. o tear maquina, à espera, ela sabe que ele poderá demorar mais do que deveria. onde andará ulisses? em quais mares ou corpos afoga sua boca ávida? os postais não foram enviados, a carta não foi entregue. ainda espero minha resposta.


(sábado, 24)

longa caminhada. os baforejos e as lentes. as pessoas estranhas. tanta gente. tantas bolinhas. bolinhas. petit pois. pois, então. o que dizer disso. eu preciso escrever a nota rápida, sem o gosto amargo da saliva. esquecendo os detalhes para que somente eu possa lembrar.

(sexta, 23)

tomando um café com rembrandt. ele me olha. o fundo escuro. a tela escura. a luz oposta. os desejos opostos. as mãos simétricas, em curvas a linha deslocada. focamos a toalha, a natureza morta que devoramos lentamente. bebericando devagar o doce. o resquício de febre pede água. maquio os olhos, em quadros orientalizantes, meio egípcia, chinesa, talvez barroca. viajante misteriosa entre sedas e especiarias. sinta no ar meu perfume e me siga.


post-it

(pra Rê)


1,2,3... testando.
Não me conta nada de sumpaulo, besta.
O que acontece?
Tenho sauda'demais
bem merdelangue
e muita inveja do teu oiticica com warhol.
casa comigo?
Ain, pobrezin do meu bebê febril.
Então, como eu queria São Paulo,
ou Nova Iorque contigo.
Acho que estou com saudades de óculos valentino caminhando ao meu lado...


(quinta, 22)

É água, apenas água que escorre e escoa por mim. O corpo, que sei quente, se faz de deserto e não pensa. Sei apenas do (mais) quente lateral e do sorriso fechado, como o boquete de Marilyn Wahrol. Disponho quadrados, quadrantes, áreas. Sem medidas. Sem leis. O corpo suspenso não oscila, se esquece na queda para se encontrar sempre na aterrissagem. Giro e flutuo sem gás de descolagem, meus saltos não riscam o capô profundo de seus temores. Meu rosto agora desfigurado faz pequenas lições de piano, molto vivace, em teu corpo. Os endereços se enroscam como as ruas. Minha boca explodiu e perdeu meu sorriso numa febre rósea e lenta. Eu falo francês e tenho enxaquecas, mas me sinto leve. Sem água, sou ar, deserto. Poeira.

(Quarta, 21)

como lembrar? do que lembrar? a mochila, as roupas, isso que dói. os pés que caminham. mário ou piva? o que dizer escondido entre leques, olhando ao longe a avenida paulista. as meninas da gare são hoje os garotos da estação, caçando no metrô. não quero racionalizar, mas deixar a nota suspensa, como o corpo à espera.


(terça, 20)

sangue: um símbolo, ainda. o corpo quente. quente. como quem se acha entre triângulos e quadrados. eu esperei numa fila em silêncio, não rias. abri a nota. não dou mais que uma palavra que não seja fria. não sei mais de mim do que este nome. o peso do nome em silêncio. eu quero um abraço na sala escura ao som de jimi hendrix. diante da tela enorme apenas as fotografias passam. o tempo fora dos prédios. o tempo através dos prédios. não quero ser marginal. a função destas formas encaixadas apenas me faz esquecer apenas de mim. não quero montar quebra-cabeças.


(Segunda, 19)

Um dia entre trevas, um morto que rola sem luzes, mas quando se sabe que há a luz não precisa se perguntar o que é a luz, precisa? Eu sei que ainda nos meus quilometros. Não esqueço uma página, não esqueço um rosto. Nomes, substantivos, não se confundem com as coisas, mas enlaçam os traços de olhares ocultos. O corpo é vulnerável. Sem tempo para vampiros. Tenho frio e estou quente, muito quente. Preciso de água, tenho sede.


(Noite, Domingo, 18)

Quase não hoje e quase amanhã. Rápido, estranho. Talvez. O relatório exige a lógica que eu renunciei para continuar. O diário de viagem resta assim, aberto, folhas estanques e machucadas, mais uma vez. Há a luz, as estrelas, o vermelho e o verde, opostos cromáticos, quem sabem possam dar notas harmônicas? Do que dizes, do que eu não entendo. Sou muito literal algumas vezes e viajo quando as portas não podem ser abertas, tropeço em impressões, em códigos, mas ainda sei achar uma escada sem que me seja necessário indicar o caminho. Tudo é questão de vigas e alicerces, muito medieval, nada do meu século. Tão medieval como o incubo que abraçou o sonho da noite e com beijos róseos me abriu em febre o dia, o calor do corpo se fazendo quente, os tremores que não diziam medo, apenas estou aqui e me entrego. Fácil, mas espero.


(Domingo, 18)

Do que gira e se deixa enganar. De quando a música ruim de ontem apenas nos derruba na manhã de hoje na cama. Manhã. Talvez a última delas? Quantos dias ainda resta sem o gosto ocre de noite na boca? A boca. Ainda ela. Minhas calças sujas, o rosto suado, quase mendigo, nunca um príncipe. O corpo abandonado à espera. São Paulo é grande como um codex de devassidões, não obstante, apenas os prédios, a noite, a lua, o céu escuro e impossível de estrelas aparecem. Piva, Mário, quantos meninos ainda poderão ser vistos nestas luzes? A Paulicéia ainda regurgita sua ópera de pé quebrado. De olhar enviesado, um americamen vende sopas, atrizes, vacas verdes e orgasmos. Os acidentes impossíveis de se deixarem ver estão no sentido inverso, no andar de baixo, escondida na dobra da escada da exposição. Os monstros ainda habitam o fundo do corredor.


Passaporte
(sábado, 17)

Para Andrea, como sempre.

Não sei foi um mal ou bem, não sei nem o que se passou entre os pêlos e os copos na parede. O corpo não saberia dizer de outra maneira: ao esquecer-se foi do espaço, do fora-do-tempo, não se deixou capturar. Não havia um fora para olhar, não havia quem olhasse. É, talvez, um pouco doloroso. E não poderia ser menos que isso. A névoa confunde os olhos, as identidades. Este não pára, vai direto, mas para onde? Minha fotografia está manchada. Eu não tenho motivos para não crer e aceitar, todavia, gira e lateja, entre as jóias sem valor, os saltos carcomidos pelos passos. Tudo o que era o teu todo amor. Quilômetros de silêncio: eu errei sim, mas fostes tu mesmo o culpado. É mais do que o espaço de segurança que é (ainda) preciso. É este lugar de conforto em que o reflexo do vazio não chora. Existe ainda, n’alguma gaveta, uma primeira pedra guardada? Os olhos doem pelo gesto não realizado, nesta escuridão, sequer o vidro devolve alguma imagem. Imagem baforada. As mãos pedem álcool e assepsia. Dor da minha cabeça: esquecer, lembrar. Qual o código desta área? Os satélites que observam? Eu ainda verei teu rosto? Sem precisar procurar teu rosto numa terceira ou primeira alucinação? Eu não vendo bem minha paranóia. Não vou sangrar um delírio numa banheira e eu sequer sei cantar para contar alguma história de amor. Lembro coisas sem datas. Eu esperaria apenas um sinal a mais. Mas sinal do quê? De teu silêncio? O silêncio é o lugar fantasma roubando covas, significantes e talvez aquele elo que faz “Ele”. O sol não deixa as linhas neste inguiado de faces recusadas. Preciso reorganizar minha constelação, para um novo desenho. A minha noite, como meu tempo, não dorme. Eu apenas espero aquele abraço. Tu o sabes, como ninguém, que eu quero, o que quero. Sem águas doces. Eu comi sem fome. Ainda tenho mais meio caminho. Dá-me a mão Beatriz, minha terra tremeu. De resto, eu terei aquele chá real para beber silenciosamente, como teu solene sorriso, na minha ilha distante.


Iansã

(Sexta, 16)

De que me cercas, entre as estrelas, do que devolves nas mil faces do meu espelho. A tempestade que não inunda o mundo faz raios partirem o que há dentro de mim. Afoga e soluça. Eu tenho teu cheiro. Cavalgo o mais impossível dos ventos, domestico pensamentos. Ser açoitado por uma brisa feita dor de fim de tarde, sem romantismos, não estamos no verão. Não me pergunto se o sol virá, prefiro não. Eu tenho um banquete impossível, cedros, amendoeiras. Eu devorei meus mirtilos, doces encantos que daria àqueles lábios. Eu preciso saber que horas são. Eu exercito as mesmas palavras há longo tempo. Combinando os arranjos e concordâncias. Eu não preciso de um poema. Eu não preciso de uma longa novela, de um quadro, duas árias magníficas ou um estojo de maquiagem. Eu tento capturar sua face. Meu vento volátil e selvagem grita, sacode e esperneia. Estou aqui, nem chovi hoje, nem trevoeei hoje. Meu voou foi calmo. Minhas trevas longas. Meus trovões afogaram as sereias do meu caminho. Perdi a voz. Apenas isso. Te oferto um coração seco e velho pelo vento deste deserto imenso e imerso nestes olhos de cerâmica bárbara, sem máscaras. E isto apenas.

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