e resta apenas não o sorriso e o destacar-se
mas o perder-se
no meio da multidão
quarta-feira, 23 de janeiro de 2013
terça-feira, 22 de janeiro de 2013
ex-illium
escrevo para ocupar o tempo, a cada letra um passo adiante, andando da esquerda para direita, com o tempo escoando, sem dó. neste momento estou só, só demais e faz frio. não como os frios de inverno, mas um frio de verão, destes que entre 40 graus e, num susto, 10 ou 12, que só servem para acabar em resfriado. estou cansado, enfadado, carcomido pelo tédio.
segunda-feira, 14 de janeiro de 2013
coisas de bailarino
(para Fabricio Callabari)
é hora de uma pequeno ADÁGIO de aniversário:
certamente ALLEGRO, vivaz, mas tens APLOMB pra isso! tu podes até dançar EN ARRIÈRE, mas apesar de todos os GLISSÉS, pode ter certeza que estaremos sempre bem, mas bem ASSEMBLÉ! entre um BALLONÉ e um BALLOTTÉ... e toda a BATTERIE, faço um PORT-DE-BRAS arrevesado, mas para te dar um abraços (sem DEMI-BRAS, mas bem ALLONGÉS), sem corações BRISÉS, quando muito um CABRIOLE, só pra dar o EN L'AIR da graça, podemos até ter CHANGEMENTS DE PIEDS, mas na hora da ELEVATION, se precisar de uma mãozinha, tenho duas pra SUSTENTATION. mas apesar de tudo, o tempo escoa e o CLOCHE corre... suspende o CONTRETEMPS de nosso PROMENADE CROISÉ. que possas fazer agora que sua vida saia deste PASSÉ pra um novo DÉVELOPPÉ lindo e exibido, do qual só tu podes escolher a direção (nada pode ser ruim, até um FAILLI é útil). e apesar de todo ÉCHAPPÈ, tu não me foges mais. que não fiques triste, ainda vamos dar muitas GARGOUILLADES juntos. quando quiser comemoramos teu aniversário comendo FONDUE ou um drink qualquer, mas certamente FRAPPÉ, pra poder executar o melhor passo destas horas: um bom pas-de-bourré.
feliz aniversário, garoto, e aproveita pra sustentar o POSÉ!
e vê se não fica SOUS-SOUS hoje!
sábado, 12 de janeiro de 2013
(para M.)
tu me pedes um verso, talvez eu não possa te dar mais que uma nota riscada num pedaço de papel. ainda mais quando o abraço não dado, quando o sorriso trocado... se perde. você e teu silêncio distante. com sua galeria de poetas. você que não me entende e ri, apenas ri. se soubesses dos meus crimes noturnos, das minhas pilhas de livros. eu que achava que talvez gostasses, eu que pensava que... mas abole as palavras. eu que aprendi que não se satisfaz um desejo, que nem sempre se quer o que se deseja. e tu me pedes um poema. me pede palavras doces nas quais eu me torno estranho, mas me faço próximo. e te aproximo tanto, que vejo no fundo de suas retinas aquilo que insiste em não me dizer. e logras, me enganas... suspende. não foge, porque nunca esteve presente. e nestes lábios desenhados, entre a lente azul escondendo o fundo do olho, entre a franja escondendo meio rosto, entre o sempre mais a oeste, mais a oeste, como quem vai desvendando a si mesmo e se descobrindo para além das curvas e da névoa depois da serra. talvez me reste acreditar no que dizes, e te dou uma nota, uma nota escrita, não um poema, nem mesmo um carta, mas isto que me pede. algumas palavras que não sei o que (te) dizem. não sei como lês, ainda que brinques de bandeira e quintana, ainda que atravesses pessoa. e creio nas almas incomunicáveis de manuel, que é preciso deixar os corpos se entenderem, porque estes sempre se entendem, se confundem e se perdem, mas almas, tudo é mais difícil com elas. e vem mário, não o meu mário, não o meu m. que me pergunta se aceito o amor como ele encara, ele que faz do amor, azul e leve, mas o teu m., o teu mário, que insiste que o amor e quando um mora no outro. mas não sei como fazer isto. e fecho os olhos para não ver. e fernando me diz, a única coisa que em termos de amor aceito incondicionamente: "vem e come chocolates, pequeno, come chocolates". mas não abandono a metafícia. e outro m. me olha, me rasga... é maria me dizendo o quando és perigoso, o quando um m é pontudo em suas duas montanhas e que talvez o sol possa nascer entre elas. mas sou noturno e trevoso. ah, llansol, de dedo em riste. e você, no teu silêncio, e eu na espera. porque não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém, compor o corpo, objeto em sua função, sejam eles boca, olhos, lábios, treinando a respiração, sorrindo pelo ângulo da malícia, olhar através do vidro, baforando com suspiros... rasgar um livro numa página estrategicamente aberta. e ter de no fim, arrancar ao meu sexo a palavra de ler que te quer e soprá-la pra dentro de ti como quem diz um segredo ao pé-do-ouvido.
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
acho que aos poucos estou me perdendo de mim pelos labirintos que eu mesmo criei, por estas parede que eu mesmo fui levantando e que sei que não existem. hoje quando caminhei pelo campus, com esta fome dentro de mim, não sabia ao certo, sequer posso dizer que sabia, eu apenas fui. estou no campo agora. longe de algo, mas longe de nada. nem perto de mim. é preciso cumprir a exigência de existir. sem música de fundo. na casa alheia meu último amor foi insistentemente lembrado. na volta pra casa, na hora de fazer as malas e partir, aquele que poderia ter sido meu novo amor estava lá nos braços de outro. mas tão desconhecidos quanto o primeiro. são amores que poderiam ter sido. como as passantes, como eu que observo armado de bloco, desenhando a vida em 4/3 ou 3x4. é engraçado como insisto na repetição: estou aqui recostado, no divã, no meu velho divã de meu quarto de infância, azul royal já desbotado... talvez por isso eu goste tanto deste tom de azul. isso que poderia explicar tanta coisa também, no fundo, não explica nada. eu, armado do meu bloco, tentando escrever, os livros pelo chão, caneca de chai masala com uma larme de lait... tentando escrever para entender, tentando escrever para passar a dor. passando a dor para terceira pessoa. doendo tanto até não mais doer. talvez se achar a palavra certa, aquela palavra, mas o que desejo não posso dar. eis o limite da falta. o buraco. o salto no abismo. mas no fundo, nem sequer há o eu, o abismo, há sempre o salto que nem é um salto é um arrastar pela sucessão dos dias. tudo isso se resume numa perífrase repleta de perfume e no peso de três palavras bem colocadas que se tornam névoa pra mim. acho que não posso mais e nunca poderei. talvez nunca terei. feito para amar e impossível de ser amado.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
The Earl of Backlands, known as Sire Vizzy, the Percolator
(por André Feitosa)
Venta-se,
e nada seria mais encantador. Sombras, outrora contidas pelo gás da lamparina,
vadeiam quando cessa o branco-flâmula das jangadas. Tardinha, mas ele não
estava com o seu kipá de outrora fresco vermelho. Era longe, nas certezas
apagadas daquela semana barrenta. O calor depurou o veludo do chapéu no macio
de dedos alongados. Há gaivotas que fogem dos pedestres, quase inaudível os
ciganos interpretam motivos amantes do cais em suas guitarras do condado
portucalense. Seu peito arfante e desinteressado, completamente à mostra, sob o
trapézio casual e de botões caqui no tecido quadriculado. Aspergiu,
imediatamente à chegada, o tonel de ardor solvente no azul que era murcho do
mar, do céu e das janelas; ele bradou seu encanto, como o firmamento que se
domina pela victória-régia, ou feito a graúna que percorre esse imenso vau onde
os mortos são consumidos. Em sua aquarela estrangeira não florescem pêlos, o
peito magro é como a nuvem, sem ferros, cortes ou nuances de quaisquer
cuidados, não se vê a marcha bege dos brutos ou as linhas dos músculos comerciantes.
Pés ao mar e concha de tamanho médio no balcão da cama, zumbido no deserto
monocromático, bafo indelével da cachaça que não se intimida. Outro lugar. Por
aqui, na mercearia esfumaçada da Tonha, vejo os teus chinelos caramelizados a
borrar um piso de tacos soltos. Cigarros, quem sabe. Objetos decorativos de
toda ordem povoam o recinto, guardiões da Ilha de Páscoa, Isís de braços
abertos, shanti-dolls de sentinela, potes mágicos, tachos e relógios do sol,
dragões e cangaceiros afastam-me dessas ferragens humanas. Há também machos que
não exijo nenhuma cumplicidade, potros sem curral e de piroca na mão, boné de
propaganda camuflando ordens e mandados de açoites. Estavas de mocassins
venezianos e a serigrafia do tigre na camiseta, passeava numa motocicleta,
embalado no i-pod com a vibe do momento. Na alucinação rápida do meu breu,
lavei o piano como se fosse o teu corpo/ em casa, te toquei, sem jamais
possuí-lo com todas as notas, e de olhos lacrados, escutei a respiração grave e
melódica das cordas marteladas/ eu também rezei em você, uma novena inteira do
fervor e desassossego. Prometo-te, Kaiser sem arreios, que meus dentes não
iriam te ferir. Venha, ata-me aos mundos, meu nobre de alma, e pela minha boca
eclodem faraós embrionários, dos goles aquecidos por homens em sarcófagos como
o teu/ Sem o bigode, basta um fio contorcido desse pau/ embora, como promessa,
também aceite meia rolha, ou essa rôla por inteira nas fendas e orifícios que
tomei dos arcanjos. Olho minha faca, aquela da prima. Percorro lojas modestas
com os seus heróis vencidos. Amores vingados nos ateliês-galerias. Café e
porta-retrato imune às paragens e enchentes. Vejo que o pau dele não é lá
grande, mas poderia, no estalo e no improvável da terra erma dos romançus, ser
meu-e-dele. Não peço tanto: meus lábios urticantes dissolvem tecidos, fluidos,
impulsos elétricos e proteínas do manto de sêmen em um todo-amarelo suave e
adocicado do mais espanhol dos melões. Do pé d´água que escorre, misturo e
pincelo com cerdas de porco, revela-se o opaco silencioso dos prédios, seis,
oito, apenas e escassos; dois ou três, pavimentos artesanais e cômodos
reduzidos. Deixa-me no frio da estiagem, não tem encontro; logo à frente do
açougue, entre fados com essas mulheres acasaladas e descontroladas, busco-te
nas estrelas. Recuo da janela carpideira, e não permita que o frescor inchado
dos violoncelos alcance-me, calque-me. Madrugada, noite sem o banho nu: “Seu
Ògún, Beira-Mar, o que me trouxe o mar?”. Souvenires em línguas que não me
interesso. Há pelicanos como que de vidro incandescente, é o nascer do sábado. Bicos
longos, pés abertos com gentileza e equilíbrio – manhã onde o cavaleiro-bailarino
desliza ereto e saciado nas areias. Revoam antes da queda que ele provoca nos
encaixes daquela vila de parede escamadas. As pedras não se acostam pelo acaso
da morte, adornam as ruínas abandonadas e sustentam os afrescos desbotados na
contra-capela do vosso padroeiro. Vais mexer com o santificado? Ainda ébrio, deixa-me
salivá-lo como ao teu saxofone. Sem ar, fora do ar. Queria te beber, como
insinuo minha traquéia pela cauda espessa do chocolate vaporoso. Degusto, pelas
migalhas do vagar; do excesso que roça minha garganta, cuspo o remanescente na
taça melada, oleosa e já sem função na cozinha. Organizo a colher do plástico
sujo, ângulo reto com o pires vulgar de supermercado que te fiz o favor de
quebrar. Leva-te com o sol já plenamente refletido, porque o cabra não deve ter
medo do pedido. Resta-me o sal que alastra o imperturbável e despeça a magia.
Caminho, assento-me ao lado de uma sanfona com triângulo enferrujado: emboscada
lírica do meu baião! Na tarde, sou parte no lamento entre o gradil sujo, flores
poluídas na maresia e a vendedora com o lilás cansado no avental. No descampado
desse telhado, sozinho, ainda vejo lírios e jasmins abundantes. A cabeça do meu
pau escapa ao pijama listradinho de algodão – não quer coisa alguma, senão
brincar junto aos passarinhos do poente. O caseiro foi embora, é feriado. Meu
irmão não virá – sem descanso fácil. Estreitas serão as vielas, as cavalgadas. Tenho
fome. É noite de baile no Solar ao pé da colina, anunciada sob o lacre de cera
quente na correspondência dobrada. Cambeio a sapatilha gasta no couro de jegue,
a terceira nos tamanhos que localizei para o mercado dos dias. Calçado na pele
de cobra esverdeada, bico fino retangular, pequeno luxo manual. Um cravo branco
no alfinete, linho com bordados de renda da madrinha. Reflexos intraduzíveis no
céu que omitem o futuro. Não me tocas, mesmo, e, sobretudo, com o teu olhar de
relance. Há passos silenciosos no escuro da lua. Não me ame, especialmente e,
por favor, não me queiras com tuas loas. Sigo, sem qualquer confiança no
caminho impreciso. Obsequiosamente, afasta-me o beijo que foi só teu. Desde
outros tempos, no mesmo salão de poucos livros mofados, escuta-se ao mar
assustado. Sua Graça, o anfitrião irreconhecível das narrativas épicas que
imaginávamos, transita com familiaridade entre os seus poucos convidados,
alguns de família – vê-se aquele homem ornado por uma casaca, o mais fino
capote real em pescoço de raposa. Qualquer coisa discreta, lenço cortês de seda
no bolso, pequeno broche na lapela, cálice pintado, prataria a perder a data e
seus bordados renascença. Era o secretário da então Viscondessa ao telefone, no
desjejum, sete meses atrás. Caíram-lhe os títulos com a revolução. Hoje,
vestida com a neblina, e suspensa pelos nossos destinos amaldiçoados, abraçamo-nos
por uma valsa enternecida e triste. Minhas pernas raspadas com a sua meia fina
de seda. Outra vez, é a lembrança do punhal que nos buscou e, agora, tange os
nossos reencontros pelo toque da cavalaria. A mais formosa, e única irmã, cujo
singular do amor arrastou-me para a companhia na ilha ensolarada dos jaguares.
Ele também veio, trouxe rosas holandesas no cesto de ofertas. Seu convidado de
cachos elegantes, um homem Askhenazi, o dourado encaracolado da orelha direita,
ou um dread estilizado pela história. Perdeu a mãe logo cedo, a filha do Duchi.
Cresceu longe dos ortodoxos, e no brinco esquerdo ímpar, tem um puro diamante
cor-de-rosa, que de uso-diverso pertencia ao anel do seu avô. Fugiram no
entre-guerras de algum tempo. Aqui, ali, e mesmo acolá, ele preza a liberdade
de não ser ninguém. Desertor, com porte marcial. Chegou recente ao ilhote de
modestas proporções. Sabe-se noivo, viajante e anestesiologista: observa, como
nas horas livres de fotógrafo, as criaturas e os objetos postos a dormir. Veste
um colete sóbrio de pele, aberto e peito tricotado. Anel, botinhas, botões,
fivelas, ferrolhos: friagem nas costelas. Com as velas dispersas ao caminho,
seus olhos revelam-se tristes como a doçura crística d´além mar. Sem cruzes. Sou
dele. Estamos molhados, bêbados e trazemos o mar e os roçados conosco. Disse
que eu poderia aguardar as procissões da manhã nos sofás das instalações que
ocupa. Não me importo – dizemos um ao outro. Às vistas, próximo ao abajur,
estão as abotoadores e seus prendedores. Troco as minhas com as dele. Senta-se
numa cadeira larga de confortável madeira crua, varanda com portas abertas e
talhadas, ele traga à sua própria fumaça. Absorto e cansado do fiteiro, com as
pernas cruzadas, talvez jogada sobre a outra sem qualquer esforço. Você
continua lindo, penso. No banheiro, molho o rosto onírico, cheiro de algas
arenosas, vejo que perdi algumas gemas da camisa. No espelho de um palmo largo
e redondo, ele está com a minha abotoadura – carregada de séculos, vidas e
bruxarias. Achas que tenho cara de veado?! Aparentemente, hora de dormir.
Contenho-me da risada. Dizia-nos, a pouco, entre homens e conhaques de sua
preferência, que jamais soube como permutar águas correntes por esse lenço que
amortiza o íntimo do seu corpo sujo. Cheguei, de braços dados à madamme, e
escutei que certo moço, por hábito do leste, entrega-se aos banhos completos no
lago da propriedade quando seu corpo abandona os dejetos. Pensei no cú dos
príncipes – no dele, em especial –, como tapete de pigmentação fleumática, felpudo
e impoluto, a ensejar uso e passagem das bigas de Cícero e carruagens de Louis.
Isso dispensa papéis. Mas só pensei. “De onde tu vens, afinal?”, chancela-me.
“Do Sertão, no pau-de-arara”, replico. Ele sorri, de um modo pouco familiar,
quase arisco. Ri sem pressa. Um ventilador uiva com a quentura desconfiada e
idiota. Saudades desse olhar puto que me enxerga outro mundo. Pergunta se me
reconheço nos códigos da África-Mãe, ou dos mouros. O moço de feições célticas
sabe de algo, alguém dos tropeiros que debulham aos livros. Mas o que te sobra
de prudência, beibe, quando perder a roupinha e o cabaço com esse mestiço da
colônia rebelde? Um sopro longo do mar. No dialeto antigo, nos batuques da
Angola no século XVIII, Muceltão, decepada em Celtão, corrompida no vosso
Sertão: ele gosta de palavras. Todos os picotes de segredos cortados
espalham-se, pequenos e muitos, brancos de contraste, nesse ladrilho turvo onde
ladra a noite profunda. A mulher grita que ele não é bom para ela. O
Zé-do-Caroço anuncia o alarido por Dom Jorge. Estou em outro lugar, por certo.
Caixote pequeno, meio valise de cabra. Esbarro. A urina espessa do cachorro
abriga-se sob aquele baú deixado para trás. Pés molhados com o suor próprio. A
indolência cômoda do cachorro não se adestra como o rangido do tempo. Ela não já
não o enxerga e, decorre-se, que não precise arear o verde da secreção no seu
lado da cama. Convenço-me que não são minhas responsabilidades: urina ou
limpeza. Esse baú, meu também não é, afinal, morreu sua inquilina. É de um couro
velho, ambos, o do baú e o daquela dignatária, carcomidos do tal prurido de
mijo e sua nódoa que se fulcra no espelho do chão. O braço do asseio não
alcança o pequeno cômodo recortado por quatro colunas, embora vestígios da
piaçaba campestre também ali se acumulem. A poeira avoluma-se, aderida feito
mingau no entorno dos pequenos vasos, invertidos e de um plástico quiçá
resistente. Um deles, em desequilíbrio..., de bordas já retorcidas – quem sabe
pelo banho recorrente de intimidade líquida das espécimes e animais. Perdem a
chave, que era em bronze. Também não funciona trancar a porta. Há pregos que
desenham o couro dos objetos com figuras de pouco valor. Há iniciais que se
perderam nas longínquas memórias. Dentro, o tecido de chita que forrava a madeira
e outrora adormecia o transporte do redário, esse também já queimou pelos
séculos. Rasgos, musgos de outros dias, buracos na própria madeira desgastada.
Duas argolas projetam-se nas laterais, embora se antecipe o desuso pela rigidez
áspera que freia qualquer toque gentil. Há tanta poeira que as superfícies
estão lisas e desbotadas. Imagino que não há nada dentro. Assim como na
caixinha do viajante, parente dessa madeira. Há um tarro de cortiça portuguesa
em algum lugar no caminho dos cegos. Uma moldura silenciosa para o colorido de
uma pintura aborígene mexicana. Arca de madeira e azulejos azuis. Dispersas,
também esculturas totêmicas, todas de madeira como as máscaras de girafas e
elefantes. O santo, os protetores e um baobá, com duas voltas de marfim branco
em uma corrente. Espada de índio guerreiro, madeira com ponta. Tambor de
ritual, maracá com penas negras. Jogados, quando poderiam estar no baú. Agora,
o peso desse ferro de marcar fecha e inibe qualquer movimento. A luz do forno
na cozinha queima. Por menos trabalho, fisgam-se homens pela doçaria conventual,
rebuçadinhos, envenenados: religiosos em travessas. Oferecem-se Bolas de Berlim
para os aliciados, doces com gentileza e creme de pasteleiro. Fecho a
portinhola, e as folhas que adentram pela janela são migalhadas. Fudemos, não
sei a quem, ou de que modo. “Te fudi”, ele me diz e um grilo pia, feito
matraca, feito rabeca, feito pandeiros. Entre cadafalsos de sonhos, diz que não
escolhe ou faz distinção, aprecia o mistério nesse fator aleatório da
cada~sempre~nova~vez: que o mar traga-lhe um rosto que por ele se apeteça.
Queres uma luva para os teus cinco de paus? Ficas ou guardo? Porra de ilha.
Mentiras-entre-mundos: dê-me os centímetros, e não as horas. Estremeçei aos
dicionários: ai de mim e do meu céu... e não o tomo por vossa mercê; não se
dignas, afinal, à corruptela no meu já saudoso “você”. Garoto, que partiu.
Doravante, és esse tu indefinido, um tu particularizado e atrevido, e por isso
íntimo e próprio. Dá-me a licença, vou lavar o rosto que tu perturbas. Sem
espelhos. Pegar a mochila de rodinhas, guardar os meus papéis e o meio século
de maquilagem. É verdade, e cruel verdade, que “você” apenas existia no meu
sertão desgraçado e distante. Desço do meu círculo mágico, barulho na escada
cambaleante, afasto-me da posição onde procuro a tudo que não encontro. Lá, ou
aqui, não sobra camada de ti quando..., quando eu, quando tento, quando me
recobro que estive ao teu lado e sozinho, e recupero, e assumo, que foi sempre,
uma versão apenas de mim. Desço pela cabeceira do rio. Desenterrei o corpo
dele, jogado nessa cacimba. Encontro o cacho finado desse último dourado. Sinto
a dor, trinco, e não é do músculo cardíaco. É no pé. E não é Aquiles. O contato
nesse encontro junto à dor mantém-me fincado à superfície, ao barro e não
jogado às águas. Coloquei-o, pela última vez, na água quente, para ver se o
couro largava desse cheiro habitual e impregnado por mulher. Pedi que me
fizesse o mapa, onde estávamos naquele momento do zodíaco? Quando me falas do
Muceltão, puxa-me ao barro que, eu, retirante, abandonei. Não voltaria e matar
é o destino quando os caminhos serão vazios. Queria um bosque de sequóias no
meu sertão para elevar-me dos vaqueiros, do cangaço e de conselheiro. Foice na
mão, léguas de ouro no baixo e médio Jaguaribe. Se queres mostrar como és
macho, porque balanças a merda desse caralho amolecido? Tenho sono dúbio, e
preciso mesmo dormir, e trabalhar pelo comer. Seguir. No Muceltão,
garoto-alvinho, você já não é marrano, cortaram seus fios em caracol, não tens
o requinte que investi e não és o herói da saga. No Muceltão, onde não há
imaginário teu-e-meu, morreste à tua própria sorte e não interfiro com juras
medonhas. No Muceltão nunca houve o seu corpo perto do meu, e não haveria,
também, ilhas e valsas. No Muceltão, o que nunca foi “meu”, castelo de areia,
castelo de cartas, p,a,l,a,v,r,a,s, dobraduras... perdem-se ao sol. Se é ruim!?
Mão esquerda no peito, o meu. Batidas. Vou até o banheiro, e da gaveta escura,
imóvel, fisgo do covil aracnídeo, trago a embalagem transparente do óleo com
fragrância de açaí e propriedades emolientes. Ganhei há tempos. Está coberto de
poeira, com uma textura condensada na parte superior; e, abaixo, após o suave
degradé, vem aquela porção que seria a mais próxima da água solúvel. “Agite
antes de usar”. Misturam-se tempos e camadas. Gotas do produto, quando findo o
banho longo, tornam-se aquecidas no contato com o meu corpo já velho. Esse óleo
de 200 ml. e o meu pé luxado, embora esquecidos ou maltratados, ensinam-me a
descer da cumeeira quando estiver cansado desse gritar pelo delírio que foste para
mim. O que sobra de ti,/ canalha-eu? Sou dele!? Ha-Ha, e há ele? Não desisti,
do primeiro mar, da primeira voz, do primeiro pau, do primeiro beijo, do
primeiro sexo: apenas quero viver de outra brincadeira. Daqui, resta-me um
pouco, que não é tudo, e um muito, que não é assim pouco, onde eu, tu, eles e
elas, podem se conjurar de outras formas – há mais e diversa literatura
bestial. Viajar para o Certão que é também litoral e continente. Busca-lo, e
sei que há muito partiu. Madrugadas
onde aprendi a decompor letra por latrina. Encontrei gente fascinante, como
sempre encontraremos alhures. Sobriedade náutila: “vostro schiavo” –
escreveu-me, antes de nadar, como um grego. Um homem. Partiu em minha direção
movediça, uma túnica empertigada ao seu corpo. Lindas serão as forças do tempo.
Sabemos que as bonecas de papier mâché estariam longe das samambaias no jardim
da minha avó. Não houve tempo para
Istambul e Amsterdã, presentes na mistura do seu corpo desde o mais longínquo
passado. Seis
cartões postais, Rio, Zurique, Bucareste, Praga, Budapeste e Viena. Tomou-lhe
os braços à passeio, ele sem roupa alguma e um lenço no pescoço. Chapéu lilás da Thorrè, música de câmara, uma névoa gorda.
Sobre os tacos no assoalho encerado, a valsa infinita do amor entre dois homens
– touché, lascívia e lentidão. Cópula nada obscena, afinal, escuta-se ao
francês com a pesada inflexão da aristocracia russa e morta. Descerrando os
dias lânguidos no mármore, os dois na renda da mesa vestida com a eternidade.
Abotoar os punhos, conhaque da maçã pós-coito: e charuto na valise onde não se
fuma, e dançar sem desleixo onde não se requebra – aos violinos, com as mãos
dadas. Quando a morte quiser sair das nossas bocas, gratificá-la para que tarde
como o retorno do inverno. Confeitaria, outro lenço na volta ao pescoço
marcado. Meias, bolsa, maquiagem, saltos – ele realmente está lindo. Não o vi
de cinta-liga quando se alinhou junto ao preto da meia-cauda: suspensórios fora
dos ombros. Afinado, afilado, afinação. Acima do tapete, ar fresco, chambre de
seda... lençóis desperdiçados. Cabelos úmidos. Mãos no bolso do colete,
aturdido. Grade fechada pelas gansas, chapéus ou penteados? Esse mormaço não
corcoveia o ar-refrigerado após os banhos frios. O celular dobra, trinca,
quatro vezes, enquanto toca disperso. De pé. Colarinho de pontas dobradas,
beijos afogados nas c-cerejeiras a-agonizantes, pince-nez e lenço que soluçava
fora do bolso geográfico. Parada. Ali não é adequado, não é pertinente, embora
condescendente à barba de senhorio. Restaurante aceitável e não faz ruído.
Teria imenso prazer em pagar-lhe pela chateação, pelo tempo e aborrecimento,
pelo impropério. Peço-te desculpas. Vazia, a cadeira está ocupada.
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