Sabe quando o dentista lhe dá uma anestesia para um tratamento de canal e lhe avisa para não dirigir, não fazer nada que exija atenção em, pelo menos, vinte e quatro horas? Pois bem, algumas coisas da vida deveriam ser encaradas assim. Talvez sem anestesia. Talvez com o tempo limite de tolerância. Tenho minhas dúvidas, mas não é questão de cara ou coroa. Tentei escrever sua carta hoje. Várias vezes. Já tenho o envelope com o endereço. (Mas você que me lê deveria saber que esta carta não é para você). Abro meu caderno verde, eu detesto verde, deveria ter escolhido o azul, não sei o porquê de ter ficado com o verde. “De uma carta quase escrita”, é o que se lê na capa. Gosto do dístico que você criou: “Eu sinto o passado mais longe. Eu sinto a saudade mais perto”. Oito sílabas. Contraste. E ainda te achas muito triste para a poesia. Tenho medo das minhas escolhas. Tudo o que vejo são os livros se empilhando no chão do quarto que já não queria que fosse ainda meu quarto. Tenho sedo como também tenho uma bela caixa de lápis de cor. Os lápis… sei usar, mas e a sede? Há a angústia que cresce. Sei que você não sabe procurar pelos indícios que te deixo. Meu erro? Tudo aqui é um discurso fundamentado sobre um grande abandono e solidão. Não acredite que talvez estas palavras sejam melancólicas. Nada foi perdido. Nada há para ser procurado. Pleurez, mes yeux. Angústia, ainda canta Callas. Piangerò la mia sorte. Eu-te-amo não é uma frase. Na situação limite você conhece apenas os incidentes. Qual seu plano de vôo? Quais suas escalas? Lembre-se, não posso fazer as escolhas por você. Meu passaporte está na gaveta, mas eu perdi minha identidade. Não sei grafar mais meu nome. Num texto comum, a sintaxe se torce e balança. Eu remontei as cenas, fiz minha leitura, anos 20 e século XVI – e que eu sei? Tudo o que sei é disto que me diz não ainda. Faço uma pergunta, se por ventura algum psicanalista me lê, como situar a castração no real? Como ler o real da castração? “Eu sou um castrato e na minha corte minha voz é que reina soberana”, insiste Caffarelli. Quell’usignolo che innamorato. Não sei cantar a minha ária e ainda tenho pesadelos. O fundo negro. Fotografias. Paris. Versailles? Não, é o Louvre. Corredor oeste. Um vulto corre e corre. Escadarias. Olho no espelho: tenho os olhos esquerdo vermelho como sangue. A luz do dia que o irrita. Saco o bisturi. Escrevo no cerne do osso a senha. Espirituoso como sou, arrumo as luvas de pelica, volto até a parede, as sirenes tocam no mesmo tempo em que saco o quadro. É mortal. O vulto, não sei dizer dos traços, dizer quem é este outro absoluto, aparece diante de mim: uso o quadro como arma. Uma, duas, três vezes. Rasgando o tecido, quebrando-lhe as estruturas. Eu o matei usando a Mona Lisa. Pode-se dizer que este é um uso limite para uma obra de arte. Corpo caído diante de mim, assalto-lhe a carteira, abatendo sua identidade: descubro-lhe o nome… Leonardo, como o autor do quadro. Assino o canto direito da cena. esqueço.
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