domingo, 5 de setembro de 2010

Nota mental

Quilibet unius cujusque individui affectus ab
affectu alterius tantum discrepat, quantum
essentia unius ab essentia alterius differt.
Spinoza – Ethique, III, prop. LVII.


O sol bate em minha janela e é tarde, literalmente. Meu corpo absorve aos poucos o cloridrato de amitriptilina, como se preparasse as malas para alguma fuga, espero que o sono venha. Insuportável o dia. Ouço John Legend no acaso que eu mesmo preparei (depois de um Kyrie Eleison). O mundo é uma confusão sonora. Hoje ao menos meu estômago está calmo, mas você não sabe o que isto significa. Quase à Tirésias eu poderia escrever: o que tem de acontecer, acontecerá, embora eu insista em continuar escrevendo e, ainda que o que esteja dito esteja ali ainda, não conheço verdades poderosas. Eu acho que tu não virás comigo. Não sairei de casa. Não posso. Não sei o que fazer neste sentido. Nada faz sentido. Talvez haja luz demais, por isso o sono não vem. A mais sólida razão não resiste aos golpes da adversidade. Com isto talvez pudesse tu descobrir meu nome. Meus olhos se fecham para a rua que passa. A falta de poesia deste momento seca meu corpo. Com Deus morto é impossível realizar as orações ao pé do altar. Não desejo o domingo. Só eu não brigo. Só eu não namoro. “-Carlos, talvez o amor sempre possa esperar…” Aqui não é o soldado deitado que espera a morte, tão 1930. O telefone nunca grita. “Ah, isto ainda Carlos, sossegue, o amor é isto que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija…” Não há tiroteiro que alcance meu corpo. Talvez você sequer se lembre do meu rosto, nem consiga descrevê-lo, mas também eu não posso descrever o toque de sua pele como me lembro. Repuxo um livro de debaixo do travesseiro, última opção antes de mais comprimido, eu não tenho um coração de metal. Há algo atravessado na minha aorta que se pergunta sobre qual caminho seguir: voltar as velhas veias, continuar aqui, tentar outras? Meu corpo pensa enquanto minha mente quer esquecer a si. Não irei ao parque, não sairei amanhã, não farei mais rastros. Aos poucos irei apagá-los. A coragem maior não é deixar o rastro para ser seguido, mas apagá-lo para enfrentar a vida abandonado. De qualquer maneira, isto não é um sonho.


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