Talvez eu tenha nascido para estar assim, perdido na escrita, escrevendo no vazio como quem conversa com fantasmas. Começo a pensar que é hora de recuperar uma boa gramática. Brincar de foracluir algumas coisas, trocando os papéis, mudando as datas, obliterando a filologia… Acho que nunca tivemos tanto tempo para nós quanto esta noite, mas eu te ouço apenas entre ruídos. É o domingo. Um galo canta perto daqui, talvez seja imaginação, meu gato ronrona perto de mim. Entre os sons que abafam tua voz, ouço algo sobre vagalumes, desejos, oráculos… Qual o meu horóscopo para hoje? Tenho que te provar que não sou coelho, mas gato. Meu zodíaco chinês enviesado. Tu me dizes coisas que minha lógica compreende, mas não sei se gosto de entender, de saber o que ecoa… uma noite qualquer, talvez mais específica do que deveria, sempre retorna. Eu estou assombrado, mas não são meus fantasmas, é este que tu me deixaste para além de um post-it colado num espelho, uma voz que vibra no escuro dos olhos fechados. “Se o amor que me deixar, me deixe num domingo, eu não vou reclamar, posso até achar que ficar só é lindo…”… Bethânia faz meu ruído. Eu tento dormir, mas não consigo. Reaviva a eterna luta, sem senhor nem escravo, entre o ente e o ser. O ente precisa dormir, mas o ser pensa, pensa, pensa… quem faz esta história? De quem é esta voz que se prende a este silêncio? Escrever é brincar de trapezista, sem rede de segurança, tecendo o perigo, se escondendo nas lacunas, mas o que vejo na minha janela aberta me contraria: as nuvens se abrem. A segunda-feira é que faz isto. No meu sem-tempo dos dias, é o tédio que escoa como areia na ampulheta. Fiz o que não deveria: abri a caixinha das lembranças e dos papéis passados. Fotografias são estetoscópios feitos para tempos futuros. Entre os olhos azuis, verdes, castanhos… eu elaborei meu próprio alfabeto. Codinome: desastre. Quando se sabe que deve parar de contar estrelas, porque elas já não estão mais ali, que não fazem mais nenhum desenho, nenhum sonho antigo, nenhuma pequena ilusão de verdade… Acabo de sair do banho, corpo limpo, pele nua, rosto sem maquiagem. Ignoro o espelho. Precisava fazer os pensamentos escoarem pelo ralo. Abro ainda mais todas as janelas do quarto. Deitado sobre os lençóis limpos, o vento entrando pelas duas janelas e roçando a pele, repasso minhas escolhas. São seis horas da manhã e não posso dizer que dormi. Em um mês tudo acaba. Um mês… o que isto significa? Que a vida é como uma pequena picada de inseto na pele, marca e coça, por vezes do pequeno buraquinho, são as minhas próprias unhas que me fazem sangrar ainda mais. Eu não sei mais em que acredito… queria poder não estar aqui, nu sobre a cama, conjecturando. O céu se abrindo azul lá fora faz parecer que isto é mais fácil. Talvez eu pudesse listar os projetos, os nomes… mas há algo que sempre volta, assombrando a minha não-lembrança dos meus próprios sonhos. É a hora de, pouco a pouco, ir esquecendo este período. Talvez não tenha sido vida, a vida como vida, real e dolorosa, real e dolorida… Mas é noutra coisa que penso. Preciso suspender este texto. Há intrusos que se dependuram nele demais. Estará preso naquele “a”, quarta linha, terceira palavra, em que sílaba. Eu sempre abro um pouco mais os portões do meu próprio Nifleheim no campo aberto do Gai-Hinnom. Não sei o que vejo tanto quanto não sei do controle que tenho quando escrevo. Sou eu quem escrevo ou aquele que coloca as vírgulas? Talvez eu durma logo mais, talvez, como sempre, não sonhe, talvez só me esqueça, o que por si só, neste momento, seria um alívio. Não que isto seja uma pequena morte, mas um momento de fôlego. Na maioria das vezes, viver pode ser uma loucura perigosa demais.
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