quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Hipótese IV

Um tempo lento parecia pairar sobre as cabeças.
Um torrão de açúcar a mais no chá não significa que ele ficará bom, ela insistia nisso. Falava para si, como se pudesse dar lições, enquanto tomava o chá amargo. Do apartamento em que se confinava, da janelinha do banheiro, caso ficasse na ponta dos pés, poderia ver o mar. Simples assim. Mas ela não se importava. O apartamento meio vazio, meio silencioso, machucava um pouco, mas se acostumara. Não tinha fome e não queria saber que horas eram, não sabia o porquê e lembrava coisas que não gostaria de voltar a sentir. Era aqueles momentos rompantes de um dia cansativo, em que apenas o abandono ao pijama, ao vazio, ao esquecimento na cama, ao seu gato, poderiam fazer sentido. Ou apenas o vazio fazia sentido. Tudo se explicaria se dissesse que era domingo.
A cabeça doía um pouco. Mal lembrava como conseguiu chegar em casa, mas sabia que o belo escarpin vermelho destruído ao lado da porta deveria significar alguma coisa.
Os domingos sofriam de uma lenta tortura. Clarissa sabia que sobreviver aos domingos, a todos os domingos, era possível, mas sempre neste ritmo lento, de vazio, de amargo, como o chá. Mas chá ela sabia apreciar, além de, apesar de toda aparente fragilidade, saber-se muito resistente.
- Ele não me ligou de volta, reclamou pressentindo alguma verdade antiga latejando.
Ele, um personagem sem relevância talvez nesta cena, mesmo para Clarissa com seus longos cílios e olhos rasgados. Ela odiava correr riscos, mas vez por outra, deixava-se correr riscos como um lembrete maior do “porque não voltar a fazer isso”. Mas sabia que isso era uma grande mentira, corria os riscos por que ainda tinha alguma esperança. Ela, como ninguém, odiava ter esperanças.
Sorveu o último gole do chá. Se arrastando voltou-se na direção da cama, caso caísse ali nem mesmo o apocalipse a acordaria. Mas decidiu, como todos os domingos, tentar fingir que não era domingo. Precisava de um banho, um banho rápido apenas, para recompor o mínimo de, como dizer, de possibilidade de aparecer diante do mundo estranho. Tirou rapidamente o camisão xadrez que usava para dormir (camisolas significavam em sua enfática retórica uma noite especial) deixando aparecer um corpo bem feito, apesar de cansado. Tinha uma cicatriz, herança de uma infância pouco calma, na nuca.
Um banho gelado para aplacar a fúria, eis o que receitou para si. Odiava como ninguém a força lacerante do contato com a água gelada, mas neste momento era o que precisava. Um banho rápido, nada mais. Sentir-se dona de seu corpo, e nada. mais. Os pés doíam ainda, marcados pela longa caminhada. Mas decidiu não pensar no ontem, queria vencer o domingo. As dores apenas lembram que ainda se está vivo. Os anjos não vivem. Eles não sofrem, não se doem.
Ainda com a pele úmida, jogou sobre o corpo uma camiseta branca com o rosto de Marilyn Monroe estampada, um jeans meio velho, calçou os tênis com um pouco de dificuldade. Os cabelos curtos ainda pingavam, mas não queria saber das pessoas, precisava apenas caminhar, correr esquecendo o corpo no vento para que o vento lembrasse o corpo, para ajudar o tempo, o domingo, a andar um pouco mais depressa.

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