“para ou por um amor, sempre platônico”.
(certa e novamente para Andrea, que possui as chaves)
Chuva. Sempre chove nesta cidade nesta época do ano, por isso tenho certeza que também chovia naquele dia. Talvez não chovesse lá fora tanto quanto chovia dentro de mim. O que se afogava em mim era aquilo que não poderia ser visto. Eu te via, de longe, sempre de longe. Uma vez, uma primeira vez e isto apenas, você me viu. Não sorriu para mim. Não me viu de todo. Eu comprara a “Estrela da Vida Inteira”, você sabe, ou deveria, é Bandeira, Manuel Bandeira. Acho que dou muita bandeira, ou talvez não. Ainda não li tudo, nem este livro e nem muitos outros. Isto talvez não importe. Poucas vezes passei de 1945. Vezes menores ainda cheguei a 2010, ano em que te encontraria. “Minh’alma sofre e sonha e goza”, é um verso grifado naquele livro que você tocou. “suba em flor teu cantar nicaragüense”, diz o último verso, da última página, ao contrário do primeiro que em flor, não diz, mas se faz bem-nascido. Se eu desisto não é por te desejar apenas imagem, mas por que é nesta imagem que eu me assombro. As tuas pilhas e pilhas de livros e as minhas pilhas e pilhas de livros não se confundem. Os meus são referências, os teus, minhas futuras referências, ou não. Eu creio ter anotado a data, na capa do livro, coisa que sempre faço. (Oito de Abril). Livro que foi a São Paulo comigo, e voltou, não deveria ter voltado, talvez devesse ter ido ao Rio. Eu sei o porquê eu fui a São Paulo e nem foi por versos outros, papéis outros. Um tentativa talvez de dar corpo a imagem. Quando fui, já não existia para ti, bem como a maneira que existiria para mim era outra. Agora, entre lenços de papel e um nariz que também insiste em chover, de uma outra maneira certamente, mas chove, a chuva que alaga os veios e veias, as rugas, preenchendo os espaços, a água também sabe fazer o deserto. Você nem sabe que eu existo. As sombras da minha parede fazem cinema, por isso escrevo um diário. A liteira que ando mudará de nome, o pacto é com o diabo. As almas se vendem facilmente, mas o que vender quando não se tem alma? Como barganhar com Mefistófeles? Talvez um postal anônimo, talvez um esquecimento, mas não sei. Sei apenas observar, à distância, muitos livros acima, detrás dos óculos, você e eu. Não uso mais os meus. Para que olhos quando se é todo pele. Pele esticada sobre a armação frágil do impossível de mim. Eu não sei do que dói em ti, ou como as coisas poderiam doer em ti. Talvez nada doa. Por sensível as dores, no meu mundo sépia, procuro entender as coisas através de suas pontas cortantes. É importante? Não sei. Eu preciso assuar o nariz. Um espirro tão fortuito e tão além dos lances de dados. Se talvez eu listasse em meu banquete os meus fantasmas, quais deles você reconheceria? Entre quais deles você se sentaria? Derrida apreensivo vê nas fumaças a sua própria indiferença. Deleuze entre um pensamento além e um copo a mais, dobra na vista turva o eu e não se conhece. Em que espelho estará Lacan? Eu ouço, na noite, e nem é madrugada ainda, uma criança que chora. Preciso dizer os outros nomes para enganar e esganar o que por força queria dizer e não quero. Alguém, em algum lugar, disse-me que qualquer um escreve dois parágrafos, mas não são todos que lêem dois parágrafos. Não sei a importância disto ainda. Talvez nem venha a saber. Não importa no final. Chove sempre do mesmo jeito, molhando as referências, mofando os livros. Bartleby é uma flor aberta em musgo e hera no centro da minha biblioteca. Só me resta sempre jogar o mesmo jogo diferente: strip-poker com Madame Bovary. Que rir primeiro será o perdedor, mas eu sempre espero ser o segundo e também sempre perco. Preciso abrir minhas notas, descobrir o que fazer com elas. Meus pincéis estão jogados. Eu queria poder entrar no jogo, no circuito da vida. Ali, para além da janela, mas ao mesmo tempo quem precisa estar na rua quando se pode observá-la daqui, da minha janela, da bancada onde insisto em escrever. Corro, quem sabe, mais perigos aqui do que lá. Meus fantasmas estão sempre com fome. É preciso sempre alimentá-los com páginas e mais páginas de furor. Isto no fundo é mais para eles do que para ti, mas o que é isto? Isto que sobrevive como um rosto pintado em aquarela, como uma futura estampa para uma camiseta. Eu nem queria isto de apertar os meus parafusos. “Segura o hashi direito, garota, terei de alimentar na boca?”. Como fazer da cena um alexandrino perfeito? Se/gu/ra o/ha/shi/di/rei/to,/ga/rota. Quase. O murmúrio abre os leques misteriosos enquanto uma gueixa, que ironicamente eu poderia grafar como gayxa, pinta os olhos, alonga os cílios, para entrar no espelho, atravessando o palco, saindo do espetáculo com as mãos vazias e os bolsos repletos de moedas falsas. Na descida do palco recebe um bouquet de flores murchas. A fumaça de ópio preenche o lugar. Note-se que a inundação de palavras engoliu a chuva. A dor se fez e se foi, ralo abaixo. Talvez se encontre em algum bueiro marginal. Mas é preciso sempre retornar. E nem sequer saí desta cama onde os espasmos românticos, tão tísico e tão sem lirismo, tão pulmão saltitante e sem santidade me prendem. Talvez pudesse escrever da morte que é vermelha e futura e que se abre em coxas e se marca, como cinta-liga, na pele. Você, já decifrou o crime de Minha Pele Marcada? O Te Deum que toca fecha minhas portas. Minha trilha sonora é sempre aleatória. Qual a música de agora? Eu não sei se você, tanto quanto eu, agüenta os violinos como navalhas nos pulsos. O meu chá está quase acabando. Terei de passar do Earl Gray para a coca-cola. Quem disse que não se pode? O meu suéter azul surrado jogado a um canto implica comigo. Quando der, definitivamente, meia-noite eu paro. Sei que até lá ninguém irá me procurar. Eu pauso os dramas. E sempre preciso de um fundo-do-poço mais fundo. Talvez eu pudesse falar da morte vermelha que me aguarda. Como ver o vermelho neste meu caderno em que todas as cores foram arrancadas da tela? Traços de Leonardo, Miguel Angelo e mais alguém sem nome. Talvez eu pudesse falar de seus traços orientais e kamikazes. Ou de seu jeito latino. De seu lado mediterrâneo. Ou mais ainda, destes restos germânicos. Desta coisa feita enigma entre Egito, Mesopotâmia, China e tantos outros domínios mágicos numa reunião entre Incas, Maias e Astecas. Meu mundo não é um mapa. Meus degraus não fazem escada. Se você chegou até aqui, você apenas desceu, comigo, ao meu fundo falso, tão superficial e fingido que nem sei mais o sentido. Por isso copio o começo: Chuva. E é preciso tanto da chuva quando deste retorno. Sempre chove nesta cidade nesta época do ano, por isso tenho certeza que também chovia naquele dia. Talvez não chovesse lá fora tanto quanto chovia dentro de mim. Prima di andare via. Qual será o livro que me cairá as mãos amanhã. Qual o duelo aqui, como angustia, como livro da angustia, aquele que uma outra ‘você’ recrimina e diz do tempo que eu apenas afundava. Mas não se afundo, ou se é como deitar e dormir, numa cama sempre estranha. A cama, sem os estranhos. Qual é a figura fundo? Eu sempre assino Audrey e você reconhece, na minha calça larga, na ausência de maquiagem, na falta dos saltos, essa bolha que limita a minha sintaxe e o abismo. Eu preciso que você corte a sintaxe pra mim. Você que me passa em revisão todos os dias. Não preciso chegar aqui. É preciso apenas um ponto e uma chocolates. Melhor não segurar a dispersão. É o efeito da chuva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário