quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A queda

Para Andrea e Aline, que me sabem ler.

“Vestimentum tuum candidum quase nix, et facies tua sicut sol”.

Meia-noite. O corpo dolorido, os sapatos, as costas, a superfície da pele, o profundo dos olhos. Um corte pendente na coxa esquerda, um hematoma nas costas. Sem marcas de unhas. Apenas o silêncio vermelho nos lábios. O desejo escuso mergulhando e lavando as mãos nos desconhecido. Sabia um pouco de matemática. Não que fosse necessário, não o era. Uma floresta crescia no lado direito. O labirinto se bifurcava. A dor tatuava em flor as cores escondendo as cicatrizes. Voltar atrás, permanecer aqui, voar para longe. O abraço amigo ainda aquecia um pouco, mas o verme escuro corroia dolorosamente. E de dor para dor, repôs os sapatos nos pés. Era preferível sentir o físico sangrar, e se sagrava muitas vezes, vendo os filetes vermelhos na coxa. A navalha oferecia uma ferida suportável no lugar daquela jamais vislumbrada. Não gostava das marcas definitivas, temia cicatrizes¸ mesmo as que não se podiam ver. Agora optava pelos oito centímetros de vinil preto. Escarpin. Talvez a tulipa solitária que pendia ao lado do livro que lia sobre a mesa de luz, sobre um desenho mal-esboçado, entendesse. Longas silhuetas solitárias. Traços finos de grafite como reflexos de corte quase que diamante. Gostava de tulipas: simétricas, magras, esguias, elegantes e somente intelectualmente feitas flor. Sem banho, sem maquiagem. O jeans feito dia na noite. Antes de cortar a madrugada precisava atravessar um limite. Sair do quadro. Atravessar o impossível da fotografia. Como desejar aqueles olhos distantes? Uma lembrança mentirosa, que nunca existira, fulgurava como botão flamejante. Não mais que um beijo, não menos que um abraço. Talvez pudesse ler nas entrelinhas o sonho impossível. Havia descido um andar, optou por voltar. Subia os degraus ainda como se descesse, voltava para seu círculo infernal. Cortinas cerradas. Sem luzes. Apenas o som dos insetos preenchendo o calor. Era preciso mergulhar nas trevas. Paratum cor meum. A porta cerrada. Duas voltas na chave. Tirou os saltos. As veias saltavam azuis. Sempre gostara de azul, talvez por isso gostasse do escuro. Um escuro fundo do mar ou de noite sem estrelas. Banho frio, violento. Uma noite para parar com as delicadezas. Queria estar longe, lá com a sombra distante que era apenas tornada voz. Sem torrões de açúcar, finos chocolates e champanhes perfumadas. Um caractere que insistia em não responder cartas ou postais. As cartas sempre voltavam. Não rompia os selos velhos, isso a faria se sentir como um dos cavaleiros do apocalipse. Não as enviava novamente. Acumulava, como as rugas no canto dos olhos, os papéis nos cantos da gaveta. Assinando solenemente com a grafia dura, simples e rija: o nome. Havia papéis que nunca chegavam a seu destino como nunca voltavam. Era assim. Talvez fosse um pouco de sorte. Mas imaginava demais, um beijo a mais. Sem excessos. Simples assim. Tocando longitudinalmente um rosto tomado pelos quilômetros. A distância pode ser estelar e precisa. O que faria ainda se estivesse aqui. Nua, corpo molhado, tirou os brincos de pérolas oblongas e oblíquas. Sacou a navalha da gaveta. Desenrolou-a do lenço de seda. Charles Jourdan, como os saltos. Não que isso devesse significar algo, mas poderia. Talvez até signifique. Seda e pele macia se confundiam nos amendoado dos olhos, apenas a navalha diferenciava. Cena em sépia com gotas rascantes em púrpura. Quase que azul. Talvez preto. O istmo de si se abria palpitante. Um nome posto na bandeja como iguaria rara. Um ás de copas explodia em fogo na mão de uma falsa cigana com espanhol de língua dobrada no andar de cima. No andar de baixo a morte optava entre o AVC e a parada cardíaca para uns 90 anos, sem nome e rosto. Apagavam-se os números. Um último recado. Aqui. Neste andar. Escrito rápido na fumaça do cigarro. 30 segundos. O cômodo não era cômodo. Sem tempo e sem pressa para as chamas e a escuridão se espalharem pelo chão e desvanecerem. 25 segundos e contando… cirurgicamente contornando e contando.


“Praebe mihi cor tuum”.

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