segunda-feira, 7 de junho de 2010
“…ficando Barbie na caixa…”
Nas minhas pálpebras um traço preto diz do resto de maquiagem. Um corpo feminino sempre será um corpo feminino. Uma mulher vestida de homem, tirando as roupas lentamente, não é um homem, muito menos um homem que se despe: é uma mulher que se desvenda. Desejo. Objeto. O ônibus chacoalha estranhamente, deixa ver pela janela, à direita, o mar. Eu sempre tomo assento do lado esquerdo, no fundo. Ravel dói devagar nos fones de ouvido. Tenho alguns minutos para perder, ou encontrar, diante da paisagem. Recebo as pistas via sms: Antoine Donel – Truffaut / Morte em Veneza livro*filme / 8 e ½ - Fellini / Marguerite Duras [Mallarmé, ainda]. Três bancos à frente um estranho me observa. Ignoro. Preciso desvendar o impossível do meu enigma. Sem mortes. Sem vítima. Os pés ainda doem, o salto aperta, machuca, lateja. Neste momento, o all-star conforta. Copio um poema de Sérgio Milliet: “ Esse vazio que anda enche / nem a lembrança de você… / Esse vazio que só se enche/ com a ausência de você…”, 1957, que na minha edição, o poeta corrige à próprio punho este anda por nada. Andar por nada. Note-se que toda letra deslocada significa. Note-se que toda letra descolada significa. 30 segundos e tenho o dossiê do estranho. Meus livros de Portugal, S. A. Quem vai querer de brincar de bela e fera? O número de minha caixa postal você já anotou? (Florianópolis, Caixa-Postal 9012 - Cep: 88010973.) As câimbras têm aumentado. Os vazios também. Se você me disser para te ligar, irei. Não faço mais orações antes de dormir, mas ainda tenho medos e possíveis pesadelos. Não tenho sonhos criminosos. Acredite: não sei brincar de filmes de terror. Sem síndrome ou complexo de ciência. Hoje ainda me perguntaram em que acreditava, em questões de fé. Não sei em que acredito, mas queria acreditar em algo, é tão tenebroso pensar na possibilidade de não existir, você já tentou pensar nisso. Extinção de “certa consciência”. Minha maneira de tentar algo perto disso, como exercício, é tentar não pensar. Pensar sem pensar. Pensar no vazio do pensamento. Apagar a(s) língua(s), mas sempre retorno aqui, para cansar a língua, para que ela adormeça um pouco mais. Espero certo café. É divertido ver quantas pessoas não observam um quadro. (Pequena pausa: preciso desenferrujar meu francês, tive o insight para um pequeno poema). Congelo a cena diante do retrato, sem movimento, entre Zenão de Eléia e Einstein: o retrato na diagonal, o menino loiro chorão de óculos, a moça gostosa com um livro de Adília Lopes embaixo do braço, a bailarina baixinha com suas sapatilhas, a menina sentada que lê Oswald de Andrade, o homem encorpado com aliança no dedo que observa à distância outros rapazes, a menina tímida num vestido azul de bolinhas brancas, o garoto distante com acento gaúcho, o menino de olhos rasgados que tem pressa (e esconde na mochila um livro proibido), o ator que detém o gesto irônico suspenso no ar, outro menino (quase menina) louro que arruma a echarpe, o menino de olhos azuis que segura uma bússola, o menino musculoso com um costume horrível, o menino feio de mãos dadas com um menino lindo, o menino loiro de olhos azuis inteligentes, o menino horrível que se fosse bonito…, a menina-sereia que carrega muitos livros beat, a garota ruiva com um belo par de saltos, a professorinha, o menino roqueiro e detetive, o rapaz de olhos verdes por detrás de tubos de ensaio, a italianinha, os dois arquitetos (que não falam, pois é cena suspensa, mas parecem), a criança de moletom tubarão, o advogado que segura um café imaginário, um certo Camões, a senhorita de D&G, o rapaz que apenas observa as digitais e quase escapa da cena, o macumbeiro, a inglesa e a francesa que riem, tantos semblantes diante de uma janela vazia. Ninguém salta, mas todos andam, sobem, descem e se esquecem. Mas não agora. Uma multidão como as letras. Atravesso isso, óleos e aquarelas, só preciso que saiba que se você marcar um encontro, eu estarei lá (bem como se você disser que gosta de mim, eu poderia, talvez, acreditar). Há muito o ônibus parou. Meu rosto suado pede um banho gelado que não tomarei. Não gosto de água fria. Jogo-me na cama desarrumada, chuto os livros para o chão, lembro-me de tentar, também, esquecer-me.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário