segunda-feira, 12 de julho de 2010

Os Kafkas

Inseto de praga, ataca sozinho: devora (a si) sozinho. Inseto casca dura, parente das traças, reside entre vermes, livros, processos. Muito comum no fundo de bibliotecas, mas muito mais ainda, desolado no interior de um belo arquivo jurídico.
Multiforme, costuma atacar nas manhãs de sonhos inquietos, na cama.
De casca dura, parece revestido de metal, ventre castanho arredondado dividido em duros segmentos arqueados, inúmeras pernas finas, olhos capazes de divisar além e aquém das negras sombras dos caracteres que se desprendem como líquido das páginas.
Pouco natural, costuma sofrer metamorfoses para se adaptar ao meio, por processos lentos (tão lentos quanto sua digestão). Costuma ter um ímpeto revolto, avesso às suas próprias necessidades. Intenta-se contra o progenitor desde o dia do nascimento. Vencer o pai para este inseto pode ser sinal de libertação, algo que teria equivalência nos ritos de passagem da sociedade humana.
Costuma atacar o sistema neurológico central conduzindo a estágios psicossomáticos ainda não descritos, dada sua recorrência não sistemática: para cada vítima este inseto vil conduz e tece um plano ardiloso, único, singular, que jamais será repetido (há um prazer sádico em jogo).
Capaz de percorrer grandes distâncias e medidas, em estágios terminais constrói a sua volta um castelo, o qual servirá de mausolo para seu corpo morto.
Passa sua vida acompanhado de seres simbióticos, entre os quais um de espécie ainda não descrita, conhecido no vulgo como Max Brod.
Costumam morrer isolados (exilados?) para lá das muralhas da China, às portas da justiça, geralmente de tuberculose, em macas brancas e brandas alucinações.

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Texto publicado em:
LIMA, Manoel Ricardo de (Org). Quintajusta. Florianópolis: SESC-SC, 2008, p. 25.

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