segunda-feira, 12 de julho de 2010

Carta & Postais

(quase Florbela Espanca)

Para Octávio.

Hei-de dar-te o meu retrato
Que na sua moldura ri.
Beija esse pobre sorriso
Que nasceu pensando em ti.
Évora, 12.07.1916
*
Ouço Vinicius, no contraponto a voz de Bethânia, talvez deste silêncio errante, no meio do nada, que dizes que aceitaria como vida. Não acredito nisto. Abro as gavetas, as caixas, talvez até a alma vendida e fácil. Há tanto papel espalhado pelo chão. Atrás de um quadro de Kandinsky: “I didn’t mean to, honour bright. It was only for cod. I’m sorry. Wells (de Londres, sem data)”. Ah… se tu soubesses… saudades… saudades… quem não as sente? O branco é um silêncio tenso.
Hei hoje de pedir-lhe uma coisa. Será apenas um momento a dizer, descanse, meu amigo, que sei sempre fazer o que devo. Esses pesares que a memória insiste. Insisto neste fato, na lastimável pena que é não haver manicômios para corações, que para cabeças há tantos.
Eu tenho tantos postais aqui, guardados, com quadrinhas tão simples, que hoje acho que estou melancólico por achar neles graça. ([?] Es o no es el sueño que olvidé antes del alba?).
Sou triste, imensamente triste, duma tristeza amarga e doentia que a mim me faz rir às vezes. São os traços diários deste rosto lavado, porque pareço alegre e toda gente gaba a minha… alegria! Mas coloco em cena o egoísmo humano, e lembro-me que sempre há de consolar a nossa dor o espetáculo da dor dos outros. Só posso crer que muitas vezes troças de mim ou tens vontade de fazer literatura quando dizes certas coisas. Não sou bom, nem sequer quero sê-lo, contento-me em desprezar quase todos, odiar alguns, estimar raros e amar, hum… amar… não sei o que dizer a este respeito agora, difícil quando paira o silêncio (quase branco) e isto apenas preenche a madrugada. E agito sempre meus guizos e chocalhos, faço sempre barulho, um barulho infernal cheio de vida, de alegria e imito todos os risos e cá dentro é noite. Como lá fora.
Sei que desenhas e talvez possa dizer algo sobre isto com perguntas à margem, numa lição quase cotidiana, não que precises levar a sério: o que faz o homem de manhã que a mulher não tem de fazer? A barba, em termos estéticos: um complexo numa adição rítmica simples. Fazer a barba é suprimir linhas inúteis. Sem mais mosaicos de Veneza.
Nem sempre é preciso muita coisa para organizar estes meus papéis que desconheces, por vezes seria muito simples, apenas juntá-los todos e lançá-los n’alguma caixa, mas não, é preciso ter paciência para penetrar os arcanos d’uma alma que se fecha nas páginas de um livro, para perscrutar as rugas de um rosto que se deixa capturar numa fotografia (como este vestígio de uma adolescência, que nunca tive, despontando na testa), as linhas da paisagem, aquelas palavras que sempre no verso ou reversos rasgam, não querendo dizer nada, mas que a maneira da música dizem tudo.
E talvez entre desenhos, aquarelas, ter apenas o gosto de chorar, de pensar, de troças, de rir suavemente, deliciosamente, com uma pontinha de ironia ali onde às vezes há lágrimas. Sei que você não saberia disto, mas eu li Júlio Dantas (e há mais nisso), na minha desculpa de não ter nada pra fazer. (Oscuramente libros, láminas, llaves, siguem mi suerte).
*
Descrevo a cifra deste postal, sua imagem, já que o verso não tem texto e nem sequer destinatário, pelo que leva crer nunca foi enviado. Há uma clara lua que poderia dizer da amizade silenciosa da lua, mas cito mal, como sempre, Virgílio. Talvez um tempo perdido em vagos pesares que seria inútil abrir todas as janelas do mundo para tentar respirar. Estado caótico de hoje. Quase como uma confissão de Cézanne. Eu quis copiar, não consegui. É preciso sempre olhar bem o postal, pode ser que seja o último.
Meio do nada, 12-07-2010.

2 comentários: